terça-feira, 27 de março de 2012

Tarzã

Tarzan of the Apes, Edgar Rice Burroughs
Uma das dificuldades ao se ler um livro que já conta com um número razoável de adaptações é conseguir se desfazer de todos os elementos pré-concebidos que ele carrega. Tarzan é, talvez, o personagem mais adaptado que já se tem noticia, talvez depois do Drácula, com tantos momentos icônicos para a cultura popular do século vinte – os filmes com Johnny Weissmuller, os quadrinhos desenhados por Burne Hogarth, um desenho de longa-metragem da Disney – que chega a ser um pouco frustrante, por exemplo, saber que não existe macaca Chita no livro original, tampouco a frase “mim Tarzan, você Jane”, e ao final você percebe que o Tarzan que você conhece – que você acha que conhece – é na verdade um processo criativo e coletivo que se desenvolveu ao longo de um século inteiro por inúmeros autores diferentes, o mesmo que acontece, por exemplo, com os super-heróis de quadrinhos.

O livro pode ser dividido em duas partes: a primeira desenvolvendo o background do personagem – os pais, Lorde e Lady Greystoke, testemunhando um motim a bordo do navio e sendo deixados num ponto perdido da costa africana, onde seu filho vem a nascer e os pais morrerem, e como todo mundo sabe, o bebê passa a ser criado por gorilas – não por gorilas comuns, mas por uma raça superior, que já desenvolve rudimentos de linguagem e cultura próprias. A primeira metade, mostrando a infância e a adolescência do personagem, é aquilo que tornou Tarzan um mito: seus duelos contra outros animais – leões, leoas, gorilas de tribos rivais e da sua própria tribo – são narrados com o vigor e a violência de arregalar olhos num menino de onze anos em busca da heróis viris e aventuras escapistas.


Mas é preciso uma certa dose de condescendência com o autor quando ele se mostra um homem de seu tempo também nos aspectos negativos – a voz do narrador é inegavelmente racista quando se propõe a explicar a facilidade de aprendizado de Tarzan pela suposta superioridade racial do homem europeu, e a coisa fica ainda mais constrangedora quando entra em cena uma tribo de canibais negros. Não é que o personagem Tarzan seja ele próprio racista, o problema é a voz do narrador que insiste em recorrer a preconceitos raciais quanto à força física ou capacidade intelectual para justificar as habilidades de Tarzan, ou a noções de superioridade de classe (Tarzan não é superior apenas por ser um homem branco europeu, mas acima de tudo, por ter o sangue superior da nobreza européia) que são no mínimo curiosas para um autor americano. Há que se considerar que o livro é de 1912 nessas horas.

O problema com Burroughs é que não é que seja um mau escritor – seu vocabulário não é limitado como de muitos escritores de best-sellers contemporâneos – mas ele frequentemente propõe desafios de linguagem e estilo que ele próprio não consegue resolver. Por exemplo: Tarzan foi criado por macacos – macacos muito inteligentes a ponto de já terem desenvolvido sua própria linguagem – mas encontra na cabana de seus pais humanos (que não sabe, ainda, que são seus pais) uma infinidade de livros em inglês, muitos, inclusive, para alfabetização (sua mãe já estava grávida ao embarcar, daí a justificativa). Com o tempo (e graças, segundo o autor, à sua superioridade intelectual de homem europeu bem nascido) associando imagem à letras, compreendo que aquelas letras representam aquelas imagem (homem, macaco, etc). A partir daí Tarzan aprende a escrever inglês, mas não a falar inglês. Não é minha àrea de especialidade, e não faço idéia de como se alfabetiza, por exemplo, um surdo-mudo sem lhe dar uma contraparte fonética, mas até aí, com um pouco de suspensão de descrença, segue-se adiante. O curioso é que, mais adiante, Tarzan irá encontrar um capitão francês que o ensinará a falar francês, e por algum tempo será a única lingua que saberá falar. Temos um personagem que escreve numa lingua sem saber falá-la, e fala outra sem saber escrevê-la, e talvez minha maior frustração ficasse somente aí, com essa oportunidade incrivelmente rica de desenvolver um modo próprio de se expressar para um personagem que já é, em todos os outros aspectos, inigualável (até porquê, quando Tarzan fala, seus diálogos são incrivelmente banais).

O problema maior do livro, e ele está praticamente todo centrado na segunda parte, é quando Burroughs recorre em excesso – em excesso mesmo – às coincidências.
Acontece que um grupo de cientistas americanos desembarca próximo à cabana onde vive Tarzan. Por coincidência, seu navio também sofreu um motim, e por coincidência, tendo toda a costa africana para desembarcar, vieram parar ali. Por mais coincidência ainda, entre os náufragos há um John Clayton que calha de ser primo de Tarzan e herdeiro do atual Lorde Greystoke. E por outra coincidência, Clayton é apaixonado por Jane Porter, que calha de ser a primeira mulher branca que Tarzan vie na vida. O resto da história – que envolve piratas, um tesouro enterrado, a separação de Tarzan e Jane e sua viagem, acompanhado de um capitão francês, até a civilização, até encontrar Jane nos EUA, salvá-la de um incêndio florestal e de outro pretendente, numa sucessão gloriaperezistica de eventos – acaba se tornando um folhetim banal perto do vigor e da crueza da primeira parte.

Apesar da minha irritação aparente, é uma leitura divertida e é fácil de se compreender os motivos que a levaram a se tornar – eu não diria “um clássico da literatura” – uma referência. Ao mesmo tempo, é um personagem que, como tantos outros da literatura, dos quadrinhos, do cinema ou dos videogames, extrapolou sua obra original à muito tempo, tornando-se uma mitologia própria.

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