sexta-feira, 25 de março de 2011

De cervos e veados: lendo Bambi

Antes de tudo vem uma necessidade de se justificar, quando você diz para um amigo que estava lendo Bambi e tu sabe que a primeira coisa que ele vai te perguntar (com certo constrangimento) é por quê, afinal, alguém leria esse livro, já que a primeira coisa que o nome remete é um filme de desenho animado com animais falantes, coelhos fofinhos, um gambá andrógino chamado Flor e um protagonista que é (vamos abandonar eufemismos cheios de receios homofóbicos politicamente corretos em chamar de cervo ou gamo) um veado. E justifico com o mesmo discurso de sempre (estética visual impressionista, metáforas freudianas, uso pioneiro do som para suspense e, ei, Spielberg adora esse filme e fez citações em Tubarão e 1941, serve de desculpa?). Mas eu gosto, paciência, sigamos adiante, e eu tenho esse hábito de gostar de um filme e ir atrás do livro (descobri Michael Chabon assim).

Então, primeiro choque: como eu já devia ter imaginado, quando li os Contos dos Irmãos Grimm originais, Disney sanitizou os contos de fadas e histórias infantis até deixá-los palatáveis a um público americano conservador da década de 30/40 (Rainha Má da Branca de Neve sapateando até a morte com sapatos de ferro em brasa, primas feias da Cinderella cortando fora os dedos para tentar calçar os sapatinhos de cristal, etc, nada disso).

O Bambi original (Bambi, Eine Lebensgeschichte aus dem Walde, ou Bambi: A life in the woods na tradução ao inglês), do escritor vienense Felix Salten (amigo de Schnitzler e Karl Kraus, escritor e dramaturgo prolífico na sua época), é um bildungsroman com animais. Bambi nasce e desenvolve, conversa com animais e insetos, descobre o mundo, tem uma infância fofa e protegida, exceto quando “Ele” está na floresta – uma presença, com todas as conotações religiosas que isso implica, sempre destruidora e onipotente.



O caráter da história é, essencialmente, ambientalista (é considerado o primeiro livro nesse sentido). Não foi originalmente escrito para crianças. Salten muitas vezes busca um aspecto mítico e alegórico – a chegada do inverno é antecedida por um curto capítulo narrado do ponto de vista das folhas de uma árvore. Elas discutem sobre a inevitabilidade da queda, apoiam-se mutuamente frente o medo do desconhecido com mentiras reconfortantes, refletem com tristeza sobre a passagem do tempo. É uma antecipação do final amargo, resignado e melancólico do próprio livro.

Então vem o inverno, e a fome, e os animais fofinhos agora se matam uns aos outors, e vem o Homem para caçar, e tudo vira Happy Tree Friends, temos um esquilinho que se arrasta na neve com a garganta cortada, a Sra. Lebre que tem a perna arrancada a tiros e morre pedindo ajuda como quem pede que lhe alcancem uma colher de chá, e um cervo que entra em cena arrastando as tripas e cai morto aos pés do protagonista, e os cães de caça que, ao serem acusados de traidores pelos outros animais, rosnam um discurso de resignação à onipotência cruel de seus donos. Muito fofo.

De “livro do mês” em clubes de leitura da década de trinta às fogueiras nazistas que o baniram como metáfora da perseguição aos judeus (e Felix Salten, que na verdade era Siegmund Saltzmann, fugiu de Viena para a Suiça quando a situação começou a ficar tensa na Alemanha da década de 30) hoje é raro de se encontrar em edição com o texto original que seja anterior à infantilização de Disney no filme de 1941. Não é de se espantar que a visão sobre o livro seja a de uma leitura infantil – são animais falantes, afinal – mas, ao mesmo tempo, me pergunto se a noção do que deve ser uma leitura infantil não foi simplificada e purificada demais após décadas de noções idealizadas de infância e leituras politicamente corretas. Uma sensação crua de medo na visão do mundo, um certo grau de horror, me parecem, são sentimentos indissociáveis da experiência infantil – e o que eu sei sobre crianças? Eu costumava ser uma, ora, como diz o Hugh Grant no About a Boy, e uma suficientemente cagona para ter medo de fantasmas ou de que meus pais morressem, mas não paranóica com a possibilidade de ser assaltada no caminho até o supermercado, como as de hoje.

Como não leio em alemão, fiquei limitado à tradução original para o inglês, disponível numa obscura edição da Aladdin Books (selo infantil da Simon & Schuster) que não credita o tradutor, mas a princípio deve ser mesmo a primeira, de Whittaker Chambers (disponível na Amazon). A julgar pela tradução para o inglês, a prosa de Salten é direta, fluída e sutil – mesmo que as passagens mais violentas causem um horror natural, as partes emocionalmente intensas são abordadas de modo indireto (a constatação de Bambi de que sua mãe está morta é resumida pela frase “Bambi nunca mais a viu”, por exemplo).

Em português, creio que a edição mais recente do texto original deve ser de 1965, publicada na época pela Melhoramentos. Se algum editor estiver procurando por novas opções de livros (a princípio) infantis para traduzir, taí uma leitura que bem merecia encontrar uma nova geração de leitores.

Um comentário:

Carmen disse...

Muito acurado teu comentário sobre esses livros ditos infantis. Especialmente o bambi.
A minha Cinderela tinha irmãs que cortavam os dedos. Explica-se: minha mãe era de origem alemã e a historinha que ela recontava era a verdadeira, não a hollywoodizada.
Realmente, preciso lembrar mais seguidamente que existem blogs muito bons, como esse teu. Parabéns Samir.

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