quinta-feira, 7 de junho de 2012

Bond #02

O sexto livro da série foi a minha segunda escolha de leitura pelo motivo óbvio de ter inspirado o primeiro filme, mas essa escolha traz um problema menor de continuidade. Acontece que Dr. No continua exatamente de onde Moscou contra 007 havia parado, com Bond recuperando-se de um envenenamento, mas é um detalhe menor – ninguém tem duvidas de que 007 sempre sobrevive ao final.

Dr. No
O plot: o contato do MI5 na Jamaica, Strangways, e sua assistente Mary Trueblood (dois personagens introduzidos em Live and Let Die) desaparecem na Jamaica e Bond é enviado para investigar algo que M considera “praticamente férias”. Uma vez lá, Bond descobre que Strangways investigava a queixa de uma sociedade protetora de pássaros de violações no santuário natural da ilha de Crab Key, onde um tal Dr. Julius No mantém um negócio de extração de guano.

O livro: Dr. No é, na minha opinião, um dos livros seminais da literatura de aventuras, e alguém ainda precisa compilar a importância das ilhas – desertas ou particulares – na evolução do gênero. Fleming brinca conscientemente com os elementos mais sensacionalistas e apelativos de seu personagem. É fácil entender porque os produtores escolherem esse livro para iniciar a série no cinema: a trama cresce exponencialmente, de um caso banal à operação mais megalomaníaca possível, e Fleming, com suas descrições meticulosas, descreve a Jamaica dos anos cinqüenta - que ele conhecia muito bem - com tanto deslumbre quanto o sentido por Bond ao chegar ao Caribe (nota de rodapé: Fleming é o único escritor atualmente a dar nome à um aeroporto, perto de Kingston).
E, uma vez que Bond é jogado numa espécie de maratona de sobrevivência criada por No, é o livro onde o subtexto do fetiche sadomasoquista fica mais latente.
Há também um desenvolvimento interessante na figura de M como o “pai-cruel” na relação com Bond. Quando este chama à presença de ambos o major Boothroyd, chefe da divisão Q (que aparece pela primeira vez nesse livro), para que troque a tradicional Beretta 418 de Bond, que Q considera uma “arma de madame”, por uma Walther PPK, Bond aceita com relutância à essa castração simbólica (oriunda das críticas de um leitor e fã, colecionador de armas, que apontou para a inadequação dos armamentos de Bond. O leitor chamava-se George Boothroyd, e acabou batizando o chefe do departamento Q).


O vilão:  um dos vilões seminais das histórias de aventura – descendente de chineses e alemães (o que, o torna, na prática, um Fu-Manchu nazista), pinças no lugar das mãos, uma fascinação sádica em impingir dor, uma base subterrânea numa ilha particular, um polvo gigante de estimação e um exército de capangas mestiços de chineses e negros, a que o livro se refere como chigroes (fico curioso em saber como traduziram isso, "chinegros"?). Dr. No não é somente louco mas conscientemente louco – “eu sou um maníaco, sr. Bond, todos os grandes homens são maníacos: são possuídos por uma mania que os direciona aos seus objetivos” – e isolado o bastante para sentir a compulsão, agora que “finalmente encontrou alguém inteligente com quem conversar”, a revelar todo o seu plano à Bond antes de (tentar) matá-lo. É uma delícia acompanhar o surgimento do clichê do vilão megalomaníaco, nas descrições coloridas e fetichistas de Fleming.

A bond-girl: Honey Rider é uma das personagens femininas mais marcantes criadas por Fleming. Sua introdução é altamente erótica: Bond a vê pela primeira vez na praia, surgindo do mar, nua exceto por um cinto de couro e uma faca, e ao ser surpreendida, Honey tapa, com as mãos, o sexo e o nariz quebrado, mas não os “firmes e belos seios, que sobressaem-se descobertos em direção à Bond”, Ursula Andress usou um biquíni, mas aqui o leitor hétero ganha mais material imaginativo. E, ainda que Honey caia em clichês de fantasias masculinas – “a nobre-pescadora-de-bom-coração-que-vai-todo-dia-ao-mar-colher-conchas” – Fleming lhe dá um passado novelesco (é órfã e vive nas ruínas da mansão que um dia foi de seus pais) e uma motivação sincera, ainda que ingênua (sonha em virar garota de programa para juntar dinheiro e consertar o nariz, quebrado por gangsters – idéia que Bond lamenta pois (que cavalheiro) a prefere do jeito que é).

Momento Mad Men:
Ele afastou-se e a segurou ao alcance do braço. Por um momento, olharam um ao outro, seus olhos brilhando de desejo. Ela respirava rápido, seus lábios entreabertos de modo que ele conseguia ver o brilho de seus dentes. Bond disse, instável: “Honey, entre nessa banheira antes que eu te dê umas palmadas”.
Ela sorriu. Sem dizer nada ela deu passo para dentro da banheira e deitou-se por completo. Olhou pra cima. Os belos cabelos de seu corpo brilharam através da água como soberanos dourados. Ela disse, provocante: “você tem que me lavar. Eu não sei como se faz. Você precisa me mostrar”.
Bond, desesperado, disse-lhe: “cale-se, Honey. E pare de flertar. Apenas pegue o sabão e a esponja e comece a esfregar. Maldição! Isso não é hora para se fazer amor. Eu vou tomar o café”. Alcançou a maçaneta e abriu a porta. Ela disse, suave: “James!”, ele virou-se. Ela estava lhe mostrando a língua. Ele retribuiu-lhe com um sorriso selvagem e bateu a porta.
Fetiche:
“Silêncio!” a voz de Dr. No era o estalar de um chicote. “Basta dessa tolice. Claro que irá doer. Me interesso pela dor. Também me interesso em descobrir o quanto o corpo humano pode suportar. De tempos em tempos, faço experiências em meu pessoal quando devem ser punidos. Vocês dois me deram uma grande cota de problemas, eu pretendo dar-lhes uma grande cota de dor. Anotarei a duração de sua resistência. Os fatos serão registrados. Um dia, minhas descobertas serão entregues ao mundo. Suas mortes terão servido aos propósito da ciência. Eu nunca desperdiço material humano. Os experimentos alemães com humanos vivos durante a guerra foram de grande benefício à ciência. Faz um ano que levei uma garota à morte ao estilo que escolhi para você, mulher. Ela era negra. Durou três horas, morreu de terror. Tenho desejado uma gqrota branca para comparação. Não fiquei surpreso quando me avisaram de sua chegada, eu sempre consigo o que quero". Doutor No sentou-se de volta em sua cadeira. Seus olhos estavam fixos na garota, observando suas reações. Ela o encarou de volta, meio hipnotizada, como um camundongo em frente à uma cobra.
(reconheço que essa frase é simplista na construção e cafona no conteúdo, ainda mais quando fora de contexto, e parece depor mais contra do que a favor da habilidade literária de Fleming. A questão é que, num livro de ação, no embate entre personagens de valores definidos e opostos, o mérito está no acúmulo de momentos, no conjunto da obra, e não tanto nos elementos isolados. No caso, o diálogo supracitado ocorre dentro de uma longa discussão mais valiosa entre Bond e No sobre a origem, o valor e manutenção de poder no mundo atual (da época), longa demais para ser citada aqui. Vale registrar que o capítulo abre com a revelação pomposa, feita por dr. No, de que o painel submarino de seu esconderijo secreto custo a fortuna de... um milhão de dólares. Dr. Evil invejaria).

Aliás, o filme: é uma adaptação relativamente fiel, embora o tanque-dragão parece ser uma idéia que fica melhor nas páginas do livro do que no filme. E, ainda bem, ninguém colocou Sean Connery lutando contra um polvo gigante.

Bibliofilia: a edição mais recente foi publicada pela Record em 2004, com o título O Satânico Dr. No, e não deve ser difícil de se encontrar.

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