terça-feira, 17 de julho de 2012

Bonds menores

Quando decidi ler a obra de Ian Fleming, escolhi deixar de fora aqueles que, tanto pelos comentários no GoodReads quanto à época da publicação original, fossem considerados os mais fracos ou menos interessantes. O que não aconteceu, tornou-se vício e paciência, decidi ir até o fim. Se Viva e Deixe Morrer e Os Diamantes são Eternos tem algo em comum, além de ambos se ambientarem em solo americano, é que a falha de um é o mérito no outro, e se o primeiro traz um vilão memorável numa trama mal costurada, o segundo traz uma boa trama  que carece de vilões melhores. Ainda assim ambos possuem um bom punhado de passagens interessantes, onde o típico "efeito Flemingk é utilizado com êxito.


 
Live and Let Die
Plot: Bond é enviado à Nova Iorque para investigar o tráfico de dobrões ingleses do século XVIII no mercado negro, e a ligação disto com a figura de Mr. Big, o chefe negro da máfia americana e possível agente da SMERSH, que usa o vodu para amedrontar a comunidade negra americana. A investigação o leva dos clubes de jazz novaiorquinos até a Flórida, o envolve com Solitaire, a noiva virgem de Mr. Big (mas que não faz muito pela trama exceto ser dama-em-perigo), e termina na Jamaica, numa ilha que é o centro de operações do vilão.
 
O livro: A primeira coisa que se discute nesse livro é o tom anti-racista capenga de Fleming. Sua lógica, expressa mais de uma vez no livro por diferentes personagens, é que a comunidade negra americana desenvolveu-se a ponto de ter médicos, cientistas e líderes iminentes, então seria natural que dela surgisse também um mestre do crime à altura dos vilões de Bond. Dentro da iniciativa louvável para a mentalidade dos anos cinquenta, cria-se um efeito oposto: por conseqüência, todos os negros da história acabam, de alguma forma, relacionados à máfia de Mr. Big – o que, por si só, acaba provocando o efeito-contrário ao pretendido por Fleming, já que a mera presença de um personagem negro acaba se tornando um foco de tensão em várias passagens. Da mesma forma, que todos os negros americanos acreditem e temam o vodu caribenho soa bastante raso, mas ok, somos leitores esclarecidos do século21 que podem se dar ao luxo de olhar o livro sob as tintas de sua época (e se você quer mesmo um exemplo de racismo na literatura popular, vá ler Edgar Rice Burroughs).
Ainda assim, olhando-se o livro apenas por seu plot, o que se tem é uma trama acelerada demais no começo, que custa a dizer o que veio, e que vai perdendo pontas pelo meio do caminho. O motivo que leva Bond a investigar Mr. Big é seu envolvimento com a SMERSH, mas isso deixa de ter importância antes da metade do livro, e não é mais retomado depois. Da mesma forma que, em vários momentos, parece realmente questionável que o surgimento de dobrões de ouro do século XVIII seja um problema tão grande que necessite envolver o MI5, mas de novo, alguma coisa precisa trazer Bond à América, e isso até que adiciona certa cor à história. Entretanto, o maior problema é que as melhores passagens do livro empalidecem frente à repetições mais bem executadas em livros posteriores - a ação no trem é mais empolgante em From Russia with Love, o mistério sobre uma ilha particular na Jamaica é mais interessante em Dr. No, as sequências de mergulho entre tubarões, mais tensas em Thunderball. Resta um tiroteio num galpão de aquários e que envolve um tanque com tubarões. E Félix Leiter é um personagem pra lá de abobado, como o são quase todos os americanos nos livros de Bond. O que resta do livro é um bom vilão, mal utilizado numa história de pouco encanto.

Fetiches:
“Bond apreciava os carros velozes e gostava de dirigi-los. Detestava a maioria dos carros americanos. Eles careciam de personalidade e de pátina de perícia individual que distingue os carros europeus. Não passavam de “veículos”, análogos na forma e na cor e até mesmo no som das buzinas. Produzidos para serem usados um ano e depois dados como pagamento na entrada do modelo do ano seguinte. Todo o encanto de dirigir tinha sido suprimido deles com a abolição  da mudança mecânica e as inovações na direção e na suspensão. Todo o esforço fora eliminado, bem como aquele íntimo contato da máquina e a estrada, que infunde destreza e sangue-frio ao volante europeu. Para Bond, os carros americanos não eram mais que confortáveis escaravelhos de metal em que se podia viajar com uma das mãos na direção, o rádio ligado a todo volume e as janelas fechadas para evitar as correntes de ar.”
Aliás, o filme: faz vinte anos desde que assisti, (Roger Moore não é meu Bond favorito), mas a principal alteração é atualizar a trama trocando os dobrões piratas por tráfico de drogas, e tirar a parte em que Felix Leiter é aleijado por um tubarão, que seria aproveitada muitos anos depois em Permissão para Matar, com Timothy Dalton.

Bibliofilia: a edição mais recente que se pode encontrar desse livro foi publicada na coleção de pockets da L&PM em 2000, sob o título Viva e Deixe Morrer, reeditando uma tradução dos anos sessenta cheia de gírias de época como chamar garota de “pequena” e inglês de “godeme”, o que até adiciona certo charme, mas deixa mais datado o texto. Em edições mais antigas, o título do livro era Os Outros que se Danem.

Diamonds are Forever
O plot: O livro abre de forma inusitada: um escorpião ataca sua presa, em algum lugar do deserto africano, para logo em seguida ser esmagado por uma pedra atirada por um homem, enquanto este espera por um helicóptero e mercadoria passa de mãos. O contrabando de diamantes da África para a Europa e a América é o foco das investigações de Bond, que para isso viaja à Nova Iorque disfarçado como o intermediário de Tiffany Case, uma das “mulas” dos contrabandistas. Os verdadeiros vilões são, em verdade, a máfia americana, personificada na gangue dos irmãos Spang. Bond passa pelas corridas de cavalo de Saratoga, pelos cassinos de Las Vegas e termina na cidade fantasma de Spectreville, onde o velho capo dos Spang brinca de faroeste vestido de caubói à bordo de um velho trem Pullman restaurado.

O livro: Ainda que sejam suficientemente caricatos para qualificarem-se como vilões de Bond, no geral a natureza vulgar dos mafiosos americanos – e a própria visão de Fleming dos americanos como infantis e incultos – tira um pouco do brilho sofisticado natural às aventuras do agente 007. De fato, o livro possui todos os elementos das melhores aventuras de Bond – a incluir-se aí a ação na ferrovia de Spectreville (um cenário interessante, mas mal aproveitado) e o clímax à bordo do Queen Elizabeth II, o maior navio de cruzeiro da época. Mas o caráter disperso e vulgar dos inimigos aleija a trama – a certa altura, Bond chega a ser literalmente coberto de lama, em alegoria ao seu envolvimento com a máfia. Embora Tiffany Case seja uma bondgirl espirituosa e memorável, os gangsters gays e brutamontes Wintt e Kidd deixam a desejar na comparação com outros capangas de vilões mais interessantes, e o velho Seraffino Spang, levemente louco vestido de caubói e brincando de faroeste, não chega a ser um personagem fascinante, apenas bizarro. E não ajuda, claro, que esse livro venha espremido entre o excelente Moonraker e o bom From Russia with Love. Ao menos, sai ganhando de Live and Let Die na comparação, pelo motivo oposto: aqui, se tem muitos momentos memoráveis, mas faz falta um vilão de carisma, que polarize o plot.

Momento Mad Men:
− Se eu tiver um filho, − disse Bond – hei de lhe dar um conselho quando atingir a maioridade. Direi-lhe só isto: ‘gaste seu dinheiro como quiser, mas não arranje nenhum bicho comedor’.
− Mas que feio! – exclamou a moça. – E isso lá é vida! Não sabe dizer uma palavra de elogio a meu vestido, ou outra coisa qualquer, em vez de ficar aí resmungando o tempo todo, achando que sou dispendiosa? Lembre-se do que dizem por aí: ‘se não gosta dos meus pêssegos, por que abala minha árvore?”
− Mas eu não comecei a abalar ainda! Você não me deixa passar os braços pelo tronco!”

Aliás, o filme: nos cinemas, Os Diamantes são Eternos acaba servindo apenas de base para uma trama que se encaixa na necessidade de se dar uma conclusão ao arco de histórias com Blofeld, que no cinema dura quatro filmes. Isso fez com que muita pouca coisa se mantivesse do livro na tela, em particular apenas a ambientação e o clímax a bordo do Queen Elizabeth. É um filme que começa bem e, do momento em que Blofeld surge em cena, só piora ladeira abaixo.

Bibliofilia: idem ao livro anterior - pode ser encontrada uma edição de 2000 pela L&PM sob o título Os Diamantes são Eternos, que reimprime uma tradução da década de sessenta, cheia de gírias da época, chamada Contrabandistas de Diamantes.

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