segunda-feira, 11 de junho de 2012

Bond #03

O sétimo livro de James Bond foi o que escolhi para a minha terceira incursão  na obra de Ian Fleming.

Goldfinger
Como acontece quando leio muitas obras de um mesmo autor, é sempre no terceiro livro que começo a perceber mais conscientemente seus gostos estéticos e estilisticos. No caso, aquilo que Kingsley Amis batizou de "o efeito Fleming", ou seja, o "uso imaginativo da informação" aplicada com vigor e entusiasmo na descrição de biografias, equipamentos, comidas e bebidas, em geral com referências à marcas específicas. Em Goldfinger, Bond dirige um Aston Martin DB III, bebe com Goldfinger um Piesporter Goldtröpfchen Moselle, branco, safra 1953 ("nectar gelado", diz Fleming), e uma champanha Mouton Rothschild safra 1947. Na época, não faltaram críticos que riram do que consideraram uma afetação nouveau riche, embora na prática, fosse exatamente o elemento que preenchia as fantasias do público inglês recém saído dos anos de escassez da guerra. Cinquenta anos depois, mais que mero name dropping, essas referências funcionam como uma direção de arte narrativa, além de dar conta de certo aspecto sutil da personalidade de Bond: de que ele também se deslumbra com o acesso à artigos da boa-vida dos milionários malucos que persegue. Além do mais, ele sempre coloca na conta da firma.


O plot:  abrindo com uma citação do próprio Golfinger, de que “uma vez é acaso, duas é coincidência, três é ação inimiga”, o livro é dividido em três partes. A primeira, em que Bond é convidado por um milionário americano para descobrir como Goldfinger faz para trapaceá-lo nas cartas; a segunda, em que Bond é chamado pelo Tesouro inglês para investigar a saída ilegal de ouro do país, e que envolve, coincidentemente, Goldfinger. Na terceira, Bond infiltra-se numa convenção de criminosos organizada por Goldfinger em que este finalmente expõe seu plano: roubar todo o ouro do Fort Knox.

O livro: logo no primeiro capítulo, em que Bond rememora sua última missão – assassinar um traficante mexicano - enquanto espera seu vôo no aeroporto de Miami, Fleming desenvolve uma faceta ambígua peculiar: ainda que esteja preparado para matar em caso de necessidade, Bond detesta matar, e detesta mais ainda que lhe dêem missões específicas de assassinato. Algumas páginas mais adiante, quando é reconhecido por um milionário americano, personagem menor de Casino Royale, e os dois almoçam juntos, surge outra ambigüidade: ao mesmo tempo que Bond aprecia a “boa vida” e os luxos que o dinheiro pode proporcionar, tem um asco tipicamente burguês pelo esnobismo da alta-classe, o que lhe dá ares de uma distanciamento social e uma indiferente fria, que nos filmes facilmente é confundido com uma um tom cool mais poser.
Há mais: o gosto com que Fleming se dedica para descrever competições tensas, como a partida de bacará em Casino Royale, aqui se multiplica para duas cenas: uma partida de canastra, e posteriormente, um jogo de golge, em que Bond precisa descobrir como Goldfinger trapaceia e derrotá-lo. Acresento que acho golfe o esporte mais chato possível depois, talvez, do beisebol, e ainda assim Fleming consegue inserir uma tensão quase insuportável no duelo de trapaças entre os dois.

O vilão: o livro traz um dos vilões mais memoráveis de toda a série, e não falo de Goldfinger, mas do seu principal capanga, Oddjob. Um coreano (ah, Bond e os orientais...) descrito mais como animal que como homem, mudo e eficiente como um robô, fisicamente grotesco como todo bom vilão de Bond, o próprio arquétipo do capanga faz-tudo, que dali por diante seria repetido à exaustão em todo e qualquer livro/filme/produto-cultural-de-ação.

Bond-girl: Golfinger tem a particularidade de trazer três bondgirls. A primeira, e uma das mais emblemáticas da série, é Jill Masterton, a assistente do vilão que Bond seduz e convence a trair seu chefe, para terminar mais adiante morta pintada de ouro da cabeça aos pés – e Bond, pela primeira vez na série, sente a culpa e a responsabilidade por uma morte causada por suas ações. A segunda é Tilly Masterton, a irmã de Jill em busca de vingança. E a terceira é, claro, Pussy Galore, a carismática líder de uma gangue de lésbicas sutilmente nomeada As Betoneiras (The Cement Mixers) e que, mesmo assim, Bond seduz. É uma personagem solar e autosuficiente, que não chega a ganhar o espaço devido no livro (um erro devidamente corrigido no filme).

Momento Mad Men:
“Bond chegou à conclusão de que Tilly Masterton era uma dessas garotas cujos hormônios ficaram bagunçados. Ele conhecia bem o tipo e pensava que elas e suas contrapartes masculinas eram a conseqüência direta de dar votos às mulheres e ‘igualdade sexual’. (...). Maricas de ambos os sexos estavam por toda parte, não completamente homossexuais, mas confusos. O resultado eram mulheres querendo dominar e homens querendo ser dominados. Tinha pena deles, mas não tinha tempo para eles.
(Nada mal para quem descreveu o traseiro de Honey Ryder em Dr. No como “quase tão firme a arredondado quanto o de um rapaz”. Vai entender o que se passa na cabeça desses ingleses).
Fetiche:
“A carne dos caranguejos era o mais macio e adocicado fruto-do-mar que já degustara. Era combinada à perfeição com o sabor levemente torrado da manteiga derretida. A champanha parecia-lhe possuir o mais leve aroma de morangos. Estava gelada. A cada bocado de caranguejo, a champanha limpava o palato para o próximo. De prontidão, comeram absortos e mal trocaram uma palavra enquanto o prato não estivesse terminado.
- Senhor Bond, eu duvido que em algum lugar do mundo um homem tenha comida tão bom jantar quanto o desta noite.”

Aliás, o filme: alguns fãs (não eu) dirão que é o filme definitivo de Bond. Ao menos, consertaram o maior buraco do plot: mesmo que Fleming tenha sido meticuloso em descrever quantas pessoas e transportes seriam necessários para carregar o ouro do Fort Knox, Goldfinger levaria dias para retirá-lo fisicamente do cofre colocá-lo nos veículos – e  no filme, seu plano limita-se a tornar o ouro radioativo.

Bibliofilia: a última vez que esse livro foi publicado em português foi em 1966, e não faltam exemplares no Estante Virtual. A edição que li foi a da Penguin de 2008, do centenário de Fleming, uma das minhas capas favoritas dessa série.

Nenhum comentário:

AddThis