segunda-feira, 25 de junho de 2012

Bond #06

O quinto livro escrito por Fleming, no Brasil conhecido como Moscou contra 007, apesar de algumas lacunas no enredo, acabou se revelando uma mudança de ritmo interessante, até por ocultar o protagonista por metade da trama, além de ser o único livro em que se pode dizer que Bond executa, de fato, uma ação de espionagem.

From Russia with Love
O plot: o livro é dividido em duas partes. Na primeira, O Plano, três personagens são apresentados e desenvolvidos: o serial killer irlandês Red Grant, vivendo na Russia como carrasco-chefe da SMERSH, a coronel Rosa Klebb, chefe da própria SMERSH, e Tatiana Romanova, uma funcionária menor escolhida como isca num plano pomposamente chamado pelos russos de konspiratsia. Há ainda outros personagem menor, o enxadrista Kronsteen, encarregado de bolar o plano. A idéia é criar uma ação que cause enorme constrangimento e humilhação ao ocidente, e para isso o alvo escolhido é o serviço secreto inglês na pessoa de James Bond – responsável por melar os planos russos em pelo menos três dos quatro livros anteriores.
Na segunda parte, A Execução, Bond é convocado até Istambul, onde uma agente russa alega ter se apaixonado por sua foto nos arquivos secretos russos e pretende desertar, levando consigo uma máquina de decodificação Spektor (algo inspirado na Enigma nazista). É ali que a ação traz alguns dos elementos mais exóticos (e marcantes) da série, desde a famosa maleta 007 cheia de truques, a briga violenta e ritual entre duas mulheres ciganas, e o confronto com Red Grant à bordo do Expresso do Oriente.

 
O livro: um dos mais curiosos da série, em especial pelo modo como Fleming busca fugir de uma fórmula ao estruturá-lo em duas partes distintas, e colocar Bond apenas na segunda. A primeira pretende convencer o leitor de ser um retrato fiel dos meandros dos alto-escalões russos, e imagino que nos tempos paranóicos de guerra fria dos anos cinquenta e sessenta, deve ter sido bastante convincente. Na prática, é como se fossem dois livros em um, ou um livro que converge aos poucos em outro. Um problema decorrente disso é que cria-se uma lacuna: em que momento Tatiana passou de fato a se apaixonar por Bond e abandonar o plano da SMERSH? Mas louve-se Fleming por ousar um final em suspenso, deixando seu protagonista, em tese, morto ao final do livro (Fleming pensou em encerrar a série aqui), para retomá-lo, recuperado do envenenamento, em Dr. No. Além disso, a briga de mulheres, com direito a mordidas nos seios e roupas arrancadas, tem o lustro pulp das Men Magazines da metade do século, com todo seu vigor exploitation - e as constantes referências de Fleming à quadrinhos e livros de aventura deixam claro sua intenção de referir ao estilo.
Há ainda um momento delicioso, quando os representantes de cada setor da inteligência russa se reúnem para decidir sobre qual país deve cair sua konspiratsia, em que Fleming solta todo o veneno de seu esnobismo inglês sobre os americanos:
“Os norte-americanos possuem o departamento mais rico e maior dentre os nossos inimigos, mas não têm perfeita compreensão do trabalho. Entusiasmam-se com algum espião balcânico que diz possuir um exército secreto na Ucrânia. Dão-lhe dinheiro suficiente para comprar botas para todo esse exército. Naturalmente, ele vai direto a Paris e gasta o dinheiro em mulheres. Os norte-americanos procuram fazer tudo com dinheiro. Os bons espiões não trabalham apenas por dinheiro, apenas os maus o fazem, e desses os norte-americanos possuem legiões”. – Capítulo 5.
 
Os vilões: os principais são dois. O mais icônico é Donald “Red” Grant, o serial killer irlandês que tem seus surtos em noites de lua cheia e, cooptado pelos russos, vive para ser seu executor-chefe. É imensamente forte, musculoso, loiro e de cabelo à escovinha, e quase não diz uma palavra – Fleming criou aqui outro arquétipo de capanga de vilão, o loiro-frio-robótico-indestrutível, geralmente alemão ou russo, repetido posteriormente em pelo menos outros cinco filmes da série. Em seguida, há a coronel Rosa Klebb, outro arquétipo de vilão criado por Fleming: o da velha-feia-assassina, descrita no livro como sendo feia como um sapo, e possivelmente lésbica. O sapato com lâmina oculta é sua arma mais marcante.
 
A bond-girl: Tatiana Romanova, como todas as bond-girls, tem um passado marcado por trauma da violência ou culpa, a diferença aqui sendo que o trauma vem dela viver sob o regime comunista na Russia, descrito em lampejos de pesadelo orwelliano. Em algum momento indefinível da trama, ao invés de apenas fingir-se apaixonada por Bond, ela se apaixona de fato. Infelizmente, o retrato do medo e opressão que sente sob os comunistas na primeira parte se perde na segunda, quando o livro abandona seus pensamentos internos para mostrá-la sob a ótica de Bond – que, diferente dos filmes, mal vê uma mulher de vida sofrida e já pensa em casamento.
 
Momento Mad Men:
Foi servido um tagliatelli Verdi, acompanhado de vinho, e seguido por um gostoso escalope. “Oh, que delícia!”,  disse ela, “desde que saí da Russia, só penso no estômago”. Seus olhos se arregalaram. “Não deixe que eu engorde muito, James. Vai deixar que eu engorde a ponto de não servir mais para ser amada? Você precisa tomar cuidado, Do contrário, não farei outra coisa senão comer e dormir. Você me baterá, se eu comer demais?”
“É claro que a espancarei”.

Fetiche:
Tudo o que Zora tinha a fazer era cair sobre a outra.  A cabeça de Vida bateria contra as pedras e ficaria a mercê da adversária. Mas, subitamente, Zora começou a gritar. Bond viu que a cabeça de Vida estava enterrada no peito da outra. Seus dentes estavam em ação. Os braços de Zora abriram-se enquanto puxava o cabelo da outra, tentando afastá-la de si. Mas, já os braços de Vida estavam livres e batiam contra o corpo de Zora.
As duas separaram-se e recuaram como gatas. Os dois corpos brilhavam por entre os últimos trapos das túnicas, enquanto o sangue escorria do peito nu da mais alta.
Moveram-se cautelosamente, ambas satisfeitas por terem escapado. Ao girarem, arrancaram os últimos trapos que as cobriam e os atiraram sobre os espectdores.
Bond prendeu a respiração, vendo os dois corpos despidos e brilhantes, e sentiu que Kerim ao seu lado ficara tenso. O círculo de ciganos parecia ter-se fechado mais em volta das duas lutadoras.

Aliás, o filme: talvez um dos motivos de Moscou contra 007 ser tão popular venha de ser, ao lado de A Serviço Secreto de Sua Majestade, um dos filmes mais fiéis aos livros em toda a série, ao menos na ação (continuo sem entender de onde saiu aquele senso de humor do Bond cinematográfico, quase inexistente nos livros) - exceto pela adição de uma ou outra cena de ação extra, está tudo lá: a ambientação exótica de Istambul, o confronto no Orient Express, e o catfight fetichista das ciganas.

Bibliofilia: no Brasil, foi publicado pela primeira vez na década de sessenta com o título Espionagem!, e depois, pós filme, como Moscou contra 007. Pode ser encontrado em edições recentes pela Record.

Nenhum comentário:

AddThis