
For your eyes only
Na primeira coletânea de contos de Fleming, James Bond ensina como beber seriamente num café parisiense, o que comer na companhia de um mafioso italiano, e o significado da expressão "quantum of solace". O oitavo
livro da série reúne cinco textos escritos originalmente para uma série de
TV do agente 007 que nunca se concretizou. Três deles (From a View to a Kill, For Your Eyes Only e Rísico) são missões executadas por Bond, e em duas histórias (Quantum of Solace e The Hildebrand Rarity) o personagem apenas emoldura
ou testemunha a história de outros.
• From a view to a Kill
O plot: Um
despachante, que diariamente viaja de motocicleta do quartel-general da OTAN em
Versailles até uma base secundária levando documentos ultra-secretos, é
emboscado na estrada. James Bond, que está ali por Paris, pensando na vida, champagne
e mulheres, recebe de M a ordem de investigar o ocorrido.
O conto: pensado
originalmente como uma história de background para o vilão Hugo Drax de
Moonraker, esse conto funciona como uma aventura completa de Bond em miniatura:
há um momento tipicamente Fleming nas reminiscências de Bond sobre a melhor
bebida a se tomar num café parisiense, uma sequência de perseguição de
motocicletas, e a descoberta de um esconderijo no meio da floresta.
Vilões: não há um
vilão no sentido pleno.
Bond-girl: Mary
Ann Rusell é o contato de Bond no Setor F,
a filial francesa do serviço secreto, mas seu papel na história, além de
ser a peguete de ocasião, se resume a dar chilique quando Bond manda que avise
M de sua intenção de se fazer passar por um novo despachante.
Aliás, o filme:
utilizou apenas o nome do conto. A história permanece inédita no cinema.
Fetiche:
James Bond tomou seu primeiro drinque da tarde no Fouquet. Não foi um drinque sólido. Uma pessoa não consegue beber seriamente em cafés franceses. Do lado de fora no piso sob o sol não é lugar para vodka, whisky ou gin. Um Fine a Eau é quase sério, mas intoxica sem ter um gosto bom. Um quart de champanha ou um champagne à Orange está bom antes do lanche, mas à tardinha um quart leva à outro quart e uma garrafa indiferente de champanha é uma base ruim para uma noite. Pernod é possível, mas deve ser bebido acompanhado, e de qualquer modo Bond nunca gostou da coisa por seu gosto licoroso que o lembrava da infância. Não, em cafés você deve beber o menos ofensivo dos drinques de comédia-musical que vêm com eles, e Bond sempre pedia a mesma coisa – um Americano – Bitter Campari, Cinzano, uma larga fatia de limão e água mineral. Para a água ele sempre estipulava Perrier, pois em sua opinião água mineral cara era o modo mais barato de incrementar um drinque pobre. – From a view to a kill
• For your eyes only
O plot: na
Jamaica, um casal de amigos de M, os Havelocks, são assassinados em sua casa
por mafiosos cubanos em fuga após Castro assumir o comando na ilha. Como favor
pessoal, M pede à Bond que “resolva” a situação, numa missão voluntária sem
relação com o serviço secreto, que o leva até os lagos na fronteira entre os
EUA e o Canadá para assassinar os mafiosos e seu líder, um alemão. De tocaia,
seu caminho cruza com o de Judy, a filha do casal, que armada de arco-e-flecha
pretende vingar-se.
O conto: o mais
longo, dando título ao livro, é também o que mais acrescenta em desenvolvimento
do personagem e seu relacionamento com M. Como todo fã sabe, Bond não gosta de
receber missões de assassinato, e nesta sequer se trata de uma missão, e mais
um favor pessoal que apela à um senso de justiça pragmático de Bond. A tensão que
Fleming cria na chegada dos mafiosos à casa dos velhos Havelocks parece algo
saído de um filme do Hitchcock, assim como os momentos de tocaia na floresta,
ao redor da casa à beira do lago em Vermont, que precedem um confronto entre pistolas
e arco-e-flechas, também são memoráveis.
O vilão: após
fugir de Cuba, o coronel Von Hammerstein, um ex-nazista, pretende comprar a
todo custo as terras dos Havelock na Jamaica para usar como base de operações
para tráfico de drogas. Seu principal capanga é o mafioso Hector Gonzales.
A bond-girl: Judy
Havelock é a filha do casal assassinado pelos cubanos, e pretende se vingar de
Von Hammerstein. Habil com um arco e flecha, pretende assassiná-los em sua casa
nas florestas de Vermont, até topar com Bond, com quem forma uma aliança
relutante.
Aliás, o filme: parte
da história foi incorporada à trama de Somente para seus olhos, com Roger
Moore, trocando o nome da bond-girl de Judy para Melina, e seu arco-e-flecha por
uma besta, mas mantendo o plot do assassinato de seus pais.
Momento Mad Men:
“Não seja uma vaca estúpida. Abaixe essa maldita coisa. Isto é trabalho de homem. Como diabos você pensa que pode dar conta de quatro homens com um arco e flecha?” – For your eyes only.
• Quantum of Solace
O plot: de
passagem por Nassau e entediado numa recepção na casa do governador, Bond
comenta com este que, se um dia se casasse, seria com uma aeromoça. Isso serve
de ponto de partida para que o governador lhe conte a história do casamento de um
funcionário público, Phillip Masters, com a aeromoça Rhoda Llewellyn, e como o
relacionamento de ambos aos poucos se deteriora aos olhos da pequena sociedade
de Nassau, passando do desespero à indiferença, e culminando em humilhação.
O conto: talvez um
dos textos mais ambiciosos de Fleming, escrito imitando o estilo de W. Somerset
Maugham (que Fleming admirava e tinha como amigo pessoal), Quantum of Solace (que pode ser traduzido por algo como “Porção de Conforto”)
usa Bond apenas como moldura para uma história que, em suas pequenas crueldades
domésticas e sociais, e após um final agridoce, levam Bond à conclusão de que
suas próprias aventuras não são mais que “coisa de quadrinhos de aventura em
algum jornal barato”.
Vilão e bond-girl:
não há.
Aliás, o filme:
utilizou apenas o título do conto, a história permanece inédita.
Momento Bond vs. Vida
Real:
“- Quando toda gentileza se esvai, quando uma pessoa obvia e sinceramente não se importa se a outra está viva ou morta, então não presta mais. Esse particular insulto ao ego – pior, ao instinto de auto-preservação – nunca poderá ser perdoado. Percebi isso em centenas de casamentos. Eu vi a infidelidade flagrante ser remendada, eu vi crimes e mesmo assassinatos sendo perdoados pelo outro lado, que o diga falência ou qualquer outra forma de crime social. Mas nunca a morte da humanidade mútua em um dos parceiros. Eu pensei sobre isso e inventei um título pomposo para esse fator básico nas relações humanas. Eu a chamo de Lei da Porção de Conforto. (...- Sim - disse Bond. - Suponho que se pode dizer que todo amor e amizade é, no final das contas, baseado nisso. Seres humanos são muito inseguros. Quando a outra pessoa não apenas faz você se sentir inseguro mas parece querer propriamente destruir você, é o fim óbvio. A Porção de Conforto atinge zero. Você precisa tomar distância para se salvar.”- Quantum of Solace
• Rísico
O plot: Bond está
em Veneza para investigar a rota do tráfico de heroína para dentro da
Inglaterra. Seu principal informante, o grego Kristatos, marca com ele um
encontro no restaurante do principal suspeito, o contrabandista italiano Enrico
Colombo. Atraído à uma armadilha pela amante de Colombo, Lisi Baum, Bond é
capturado e ouve uma história inversa: que Kristatos é o principal suspeito.
Bond precisa decidir em qual das duas versões acreditar antes de tomar parte na
ação final.
O conto: Rísico é a homenagem de Fleming à Thomas
Mann e seu Morte em Veneza. Há uma passagem de ação muito bem escrita na
península do Lido com Bond fugindo dos capangas de Colombo através de um campo
minado remanescente da Segunda Guerra, e toda a sequência inicial no
restaurante, envolvendo comidas e bebidas, é típico Fleming.
O vilão: o grego Kristatos
ou o italiano Colombo? – não há porquê entregar a trama toda, apenas que o
grande vilão por trás de tudo é a velha União Soviética, num plano de fomentar
o tráfico de drogas para a Inglaterra como forma de desmoralizar o ocidente.
A bond-girl: Lisi
Baum, a amante de Colombo, serve apenas como isca para uma armadilha.
Aliás, o filme: a
trama e seus personagens já foram incluídos no filme 007 Somente para Seus Olhos, mesclados ao conto homônimo, mas o
título é um dos poucos que continua vago para uso.
Momento Fleming:
- Venha, meu amigo. Comida e bebida e muita conversa. Agora vamos parar de nos comportar como garotinhos e ser adultos. Sim? O que vai querer – gin, whisky, champagne? E esta é a melhor lingüiça em toda a Bolonha. Azeitonas de minhas próprias terras. Pão, manteiga, provolone – isto é queijo defumado – e figos frescos! Comida de camponês, mas boa. Venha. Toda essa correria deve ter aberto seu apetite”. – Rísico.
• The Hildrebrand Rarity
O plot: Bond,
meio à toa mergulhando nas ilhas Seychelles, aceita o convite de seu amigo
Fidele Barbey para um passeio à bordo do iate do milionário americano Milton
Krest e sua esposa inglesa, Liz. O problema surge logo à primeira vista: Krest
é o mais desagradável sociopata possível e um bully nato, bebendo demais, insultando
seus convidados e insinuando que tortura sua esposa com um chicote de
rabo-de-arraia por mero capricho. Quando Krest aparece morto – sufocado com o raríssimo
peixe espinhento que dá nome ao conto, Bond precisa decidir o que fazer – com o
corpo e com o potencial culpado, se é que há algo para ser feito.
O conto: outra
história em que Bond testemunha o naufrágio do casamento alheio, embora dessa
vez em primeira mão, não é uma história de serviço secreto, mas complementa o código
moral próprio de Bond, delineado em For
Your Eyes Only. O centro da história, pode-se dizer, é criar um personagem tão
extremamente desagradável que sua morte – recheada de simbolismo fálico – é a
catarse do conto.
O vilão: embora Milton
Krest não seja um criminoso, sua busca pela Raridade de Hildebrand, o raro
peixe que justifica sua viagem, o leva à envenenar todo um recife de coral para
capturar um único peixe – e Bond, um
admirador da vida marinha, assiste desolado à morte rápida da vida no coral
como se testemunhasse um genocídio, no que talvez seja um dos momentos mais
melancólicos e poéticos possíveis na prosa de Fleming.
A bond-girl: Liz
Krest cumpre apenas o papel de dama em perigo.
Aliás, o filme: elementos
da trama, incluindo seu vilão, foram utilizados em 007 Permissão para Matar,
com Timothy Dalton, embora o título seja um dos poucos que permaneça vago.
Fetiche:
“O homem estava morto – horrivelmente morto. Quando o peixe foi enfiado em sua boca, ele deve ter se levantado e tentado desesperadamente puxá-lo para fora. Mas as espinhas nas barbatanas dorsais e anais prenderam-se por dentro das bochechas e algumas das pontas espinhentas agora projetavam-se através da pele salpicada de sangue ao redor da boca obscena. Bond estremeceu. A morte deve ter chegado dentro de um minuto. Mas que minuto!” – The Hildebrandt Rarity
Bibliofilia: em
português, esse livro foi publicado pela última vez em 1965 sob o título Para Você,
Somente, encontrável em sebos. Em inglês, A View to a Kill foi publicado em separado na coleção Pocket Mini
Classics, e todos os contos, incluindo os de
Octopussy and the Living Daylights, foram publicados numa edição única pela
Penguin sob o título Quantum of Solace,
alguns anos atrás..
Nenhum comentário:
Postar um comentário