quarta-feira, 4 de abril de 2012

O Bond que descobri

Se alguma vez alguém notou um guri correndo pelas dunas de Atlântida Sul com uma maleta em mãos (“e com senha!”, gabaria-se ele), então provavelmente me viu. Dentro havia uma pistola de espoleta do tipo realista que já não se vende mais, acrescida de silenciador, um mapa (inventado) e algumas moedas. Havia também um edição em quadrinhos de “Pateta é James Bond” com uma lista completa de todos os filmes do agente 007 até então (tempos de Timothy Dalton ainda), prontamente alugados na videolocadora do bairro, e um exemplar do Manual do Detetive e do Espião da Disney. Enfim, o kit completo para o agente secreto de oito anos. Porque, aos oito anos, tudo o que Bond significava eram vilões malucos, capangas bizarros, gadgets futuristas e um herói infalível, o que se tornaria o padrão para heróis de ação em geral. Mas havia algo mais duradouro no personagem, presente de forma sutil em Sean Connery e caricaturizado em Roger Moore, no senso de humor cínico e maldoso do personagem, a sugerir que, diferente da noção compartilhada por todos os protagonistas-mirins dos filmes de aventura oitentista a que eu assistia, adultos também podem ser divertidos – se tivessem permissão para matar, claro.

Vinte e tantos anos depois, decidi dar uma nova chance à um personagem que já não me interessava tanto, começando pelos contos The Living Daylights e A View to a Kill, presentes num daqueles mini-pockets da Penguin. Na sequência, parti para Casino Royale e engatei na sequência Dr. No e Goldfinger e Thunderball (A Chantagem Atômica).


E então a surpresa: descobrir que James Bond não é o herói infalível e bidimensional que vinha sendo retratado nos filmes mais recentes (excessão feita à Daniel Craig em Casino Royale, o melhor filme da série) mas um homem que, se não chega a ser atormentado, tem lá seus fantasmas, - que o fazem somatizar a tensão cada vez que precisa cometer um assassinato, que o fazem beber e fumar em excesso a ponto de preocupar seus superiores com um comportamento autodestrutivo – e que acima de tudo isso, se revela bom no que faz por seu caráter extremamente obsessivo com detalhes. Em Casino Royale, ao explicar a complexidade da receita de seu Vesper Martini, justifica: se vai ter algo, quer não somente que ela seja o melhor possível, mas que seja também o mais complexo possível, e em porções grandes - uma vida no limite deve vir acompanhada de exageros extravagantes. Seu apreço por superlativos criam páginas de digressões sobre o melhor tipo de champagne para se tomar num café parisiense no meio de uma tarde, na descrição meticulosa de um prato de carangueijos na manteiga, nos comentários sobre as vantagens dos carros esportivos ingleses sobre os americano. Convidado para jantar em companhia de um milionário americano, pergunta-se o quanto poderia se acostumar àquela "boa vida", para logo em seguida ser tomado de um nojo profundo de seu anfitrião, por este se gabar da qualidade da comida que o próprio Bond reconhecia poucos parágrafos antes. Nisso se resume, percebo agora, o elemento que faz com que Bond tenha se tornado o fetiche masculino definitivo: aprecia o luxo, mas não os esnobes, gosta de excessos mas não os ostenta, ao contrário, frui deles de um modo bastante egoísta, seus prazeres vulgares são só seus, e daí vem sua coolness, que nada mais é do que uma indiferença fria e cruel por quase qualquer outro ser humano. Exceto, claro, pela moça que seja o alvo descartável de sua atenção momentânea.

O personagem também é machista e misógino ao extremo, e nunca fica claro para mim o quanto esses traços são reforçados para formar uma caricatura, ou se são naturais (parecem exagerados mesmo para a época, como os primeiros episódios de Mad Men pareciam). Em Goldfinger, ao conhecer Pussy Galore, a líder de uma gangue lésbica chamada The Cement Mixers (“As Betoneiras”... sutil) reflete que o homossexualismo da moça é resultado de “garotas e garotos que tiveram seus hormônios bagunçados por terem dado voto e igualdade de direitos às mulheres”. Em Thunderball, reflete sobre os perigos de uma mulher ao valante: "duas mulheres no mesmo carro é quase fatal...pois as mulheres precisam olhar os rostos uma das outras enquanto falam, para se certificar de que não deixaram de captar alguma nuance...quatro mulheres no mesmo carro é a pior combinação posseivel". Cito de cabeca, não tenho o livro agora em mãos. Tampouco há um oriental que se salve, em muitos casos a simples menção à ascendência oriental basta para dizer ao leitor que aquele personagem é do mal.

A violência, aliás, é outro fator importante na construção do personagem, seja por seus tons de fetiches sadomasoquistas – mais de uma vez Bond reflete sobre a natureza da dor e do quanto ela lhe é necessária – como seu estado frequente de tensão o assemelha à um predador sempre atento (somente Connery e Craig souberam usar esses elementos ao dar ao personagem certo movimento de pantera). Não entro nem nos aspectos sádico-fetichistas dos vilões, tem um artigo do Umberto Eco em O Super-Homem de Massa só sobre os vilões de Bond (que li na faculdade e já nem me lembro muito bem, por sinal).

Os críticos de Fleming já disseram, ainda à época dos primeiros livros, que em Bond resumem-se três aspectos tipicos do inconsciente inglês: o sadismo de um bully de colegial, as fantasias sexuais bidimensionais de um adolescente frustrado, e as aspirações esnobes e vulgares de um homem adulto de classe média. Mas é justamente esse o mérito dos livros: lê-los como uma grande fantasia masculina urbana, uma válvula de escape fetichista, que funciona em muito como um retrato da mentalidade de sua época, e que em muitos aspectos ainda se mantém. Na prática, Mad Men com sequências de ação.

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