quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Queer list

A certa altura começo a me dar conta que a grande maioria dos protagonistas dos romances que leio são homens ou mulheres héteros - mesmo quando a História, os biógrafos e as más-linguas já tiraram o autor do armário algum tempo - então fica-se nessa ausência de uma voz literária com que se possa identificar num nível mais visceral. Digo, ok, Vathek do Wiliiam Bedford (chatíssimo) consta sempre nos, hm, anais da literatura gay por associação e metáfora, e o Billy Budd do Melville é um (excelente) tratado sobre homoerotismo reprimido e repressor, que só não entra na listinha abaixo por não ser um livro abertamente gay (e nem vamos entrar na questão do “capítulo de Ishmael e Queequeg na cama” em Moby Dick). Mas entre o Satyricon e Wilde há esse grande silêncio de mensagens em código ou decadentismo intencional, que no geral acho meio frustrante, e após isso, tudo parece meio moderno demais para ser canônico. Como leitor fico meio perdido. Amigos e conhecidos comentaram recentemente comigo que tem a mesma dificuldade de ir atrás desse tipo de leitura, então talvez a listinha abaixo esteja cumprindo um serviço de utilidade pública.

A primeira dificuldade de compilar uma “lista de leitura gay” é que, se for pesquisar em sites de livrarias o que surge é um catatau de subliteratura romântica barata ao estilo Júlia/Bianca/Sabrina. Outro problema é a questão de gueto: no momento em que se aplica uma etiqueta, cria-se uma noção de gênero que parece mais diminuir do que engrandecer uma obra, como se ela só pudesse ser entendida sob aquela ótica (um problema comum, imagino, com ficção científica, mas isso é outro assunto). Ou seja, essa listinha de leitura resumes-e a reunir livros que tenham um tema em comum, como, por exemplo “livros com dinossauros” (aliás, uma outra obsessão sazonal minha, que já passou).

Então, para montar essa seleção, que venho lendo aos poucos desde o ano passado (nem só de James Bond vive o homem, afinal), me vali de muita wikipédia, sugestões de amigos, e folheando alguns livros aleatórios encontrados na Amazon, que se propõem a compilar versões mais extensas dessa lista. A lista segue por ordem alfabética de nome do autor).

• Abel Botelho, O Barão de Lavos, (1891). Não li ainda (não encontro edição). Em tese, é o primeiro romance em lingua portuguesa sobre homossexualidade (já que precede O Bom Crioulo em quatro anos), ainda que o faça no âmbito de doença.

• Adolfo Caminha, Bom-Crioulo (1895). Não li ainda. Considerando que a intenção do autor ao escrever um livro sobre marinheiros gays era ofender a marinha brasileira, está longe de ser exatamente um must-read, exceto talvez pelo valor histórico.

• Allan Hollinghurst, A Linha da Beleza (The Line of Beauty, 2004). Lido. Descobri esse livro naquele 1001 Livros para Ler antes de Morrer, que com todas as suas falhas como lista, ao menos serve para se descobrir coisas novas. Já falei desse livro numa sugestão de leitura pro rascunho, o final me destruiu como poucos livros conseguiram fazer (book hangover tremenda), e acrescento que, se houvesse prova para tirar habilitação gay (ou alvará da prefeitura, como já disse um conhecido), esse livro seria das leituras obrigatórias - ao menos, para fantasiar que a Londres dos anos oitenta pré-Aids foi o melhor dos tempos. Próxima leitura do autor deve ser A Biblioteca da Piscina (The Swimming-Pool Library, 1983) livro anterior dele, do qual não sei o que esperar.

• André Gide, O Pombo-Torcaz (Le Ramier, 2002). Lido. Talvez eu devesse me impor a leitura de Os Moedeiros Falsos, mas ando preguiçoso com calhamaços e, no mais, esse conto curtinho vale não só pelo lirismo com que Gide descreve uma transa (o “pombo-torcaz” do título é o rapaz com que Gide passou uma noite de 1907 e com o qual só lhe faltou atingir o nirvana, tendo o apelidado assim porque arrulhava como um pombo após o sexo), mas também pelos apêndices, na troca de cartas entre Gide e um amigo que mostra como o autor, ainda na primeira metade do século XX, aceitava-se sem traumas.

• Bernardo Carvalho, O Filho da Mãe (2009). Lido. Na prática, quase todo livro do Bernardo Carvalho poderia entrar nessa lista (e já li quase todos), já que personagem enrustido e identidades espelhadas são elementos comuns, mas talvez pela metáfora entre duplos e quimeras (ou por finalmente alguém explorar uma história na onipresença de soldados russos em filmes pornôs) tenho vários motivos para fazer desse livro um dos meus favoritos.

• Christopher Isherwood, Um Homem Só (A Single Man, 1964). Lido. Tenho que admitir que só fui atrás  depois de ver o filme - que, aliás, acho melhor que o livro, por mais que goste do livro (aqui, um trecho). Aliás, por mais fiel que a adaptação seja, ambos tem tons bem distintos (George é um tanto mais misantropo no livro, e o tom geral, mais pessimista). Mas pretendo ir atrás de mais coisa dele, especialente depois de ver a Cláudia Raia no Cabaret (adaptado do Berlin Stories, que deve ser livro seguinte dele que lerei).

• Edmund White, Um Jovem Americano (A Boy’s Own Story, 1982). Não li ainda, segue na fila, recomendado pelos 1001 livros para ler antes de morrer.

• James Baldwin, Giovanni (Giovanni’s Room, 1956). Não li ainda, segue na fila. Carol Bensimon me falou muito bem desse aqui.

• Jean Cocteau, O livro branco (Le livre blanc, 1928). Não lido ainda. Nunca lancado no Brasil, me deixa uma dúvida: ler na tradução para o inglês, ou para o português de Portugal?

• Jean Genet. Nossa Senhora das Flores (Notre Dame des Fleurs, 1942) ou Querelle de Brest (Querelle du Brest, 1953). Estou em dúvida entre qual dos dois começar. Gosto muito do filme do Fassbinder, mas por outro lado, talvez o Nossa Senhora já me foi recomendado por amigos. Uma hora decido.

• Oscar Wilde, Teleny, ou o Reverso da Medalha (Teleny, or, The Reverse of the Medal, 1893). Não li ainda. Não tinha interesse, me parecia chato por motivos completamente supérfluos, mas um amigo me garantir que não é, e entrou para a lista.

• William S. Burroughs, The Wild Boys: a book of the dead (1971). Lido. É complicado tentar explicar esse livro, no tanto que eu gosto muito dele, e no tanto que não tenho certeza se entendi alguma coisa. Mal há uma história conectando as muitas vinhetas aleatórias, mas se há, seria mais ou menos isso: num mundo pós-apocalíptico, um movimento revolucionário de adolescentes-gays-meio-selvagens-que-transam-feito-bichos pretende derrubar a civilização ocidental, ou o pouco que resta dela vivendo em grandes cidades-estado voltadas ao hedonismo. A isto mistura-se a história de um garoto nos anos 30 seduzido para o movimento, e um vírus que espalha-se através de uma imagem. A música do Duran Duran (e o clipe) é inspirada nesse livro, se servir de referência. A história continua, ainda mais confusa, em Port of Saints (1973), que não gostei tanto, e há certa relação vaga com The Place of Dead Roads (1983), que começou interessante e terminou sem sentido (foi quando desisti de Burroughs por um longo tempo).

• Yukio Mishima, Confissões de uma Máscara (Kamen no Kokuhaku, 1949). Mishima foi uma sugestão do Rafael Jacobsen, e a história do adolescente japonês que, no meio da Segunda Guerra, vê surgir uma distancia cada vez maior entre desejos reprimidos e a máscara social que usa, parece ser meio biográfica. É um livro bonito e sensível, ao mesmo tempo que é denso e pesado (as fantasias sádicas do narrador beiram a psicose), mas por mais que eu tenha gostado, não me atraiu para o resto da obra do Mishima.

Essa lista está sujeita a acréscimos futuros, e sugestões serão bem-vindas.

12 comentários:

Tuca. disse...

1. Nhé.

2. "Bom-Crioulo": junto com "A carne", um dos primeiros livros que li no computador, por conta de potencial conteúdo "indecente". Naturalismo, blé. Não fazia ideia de que o livro tinha sido pra ofender a Marinha. É aquele tipo de coisa: ofender, pode; dar espaço, censura. Típico.

3. Vi o seriado e não achei essa coisa toda, mas suspeito que o livro seja melhor. Lista nele.

4. Todo mundo fala do Gide no geral, mas eu nunca me interessei porque a maior parte só cita o nome e não parece ter lido nada. As novas edições brasileiras, ouvi dizer, estão bem boas.

5. Bernardo Carvalho, como você sabe, <3

6. Comecei. Tô adorando. E, realmente, é pessimista. Um amigo meu viu o espetáculo também e tá atrás desse outro.

7. Só li biografias e não ficção dele. Depois de terminar O Flaneur, vou procurar algum de ficção (Genet vai ter que esperar, muito grande).

8. Ontem, um amigo falou dele! Falou que mais releu Giovanni do que qualquer outra coisa. Acho que ouvi falar dele n'O Flaneur.

9. Iria de inglês.

10. Não vi o filme, não sei nada dos livros. De resto, a situação é a mesma do Gide.

11. Li. É bem pornozão, com cenas de tudo quanto é tipo, com uma ligeira maioria de cenas homossexuais. Bem ligeira.

12. Tive uma fase bem beats. Acho que ainda tô um pouco nela. Nada li desse senhor, além das Cartas do Yage e O gato por dentro. Acho que ele devia ser mais traduzido. Tô lendo agora a bio do Kerouac escrita por Barry Miles e, quando vejo, citação de Isherwood no prefácio <3

13. Já ouvi falar MUITO bem. Mas, mesmo com livros bem fininhos, ainda não peguei emprestado.

Tuca. disse...

Michael Chabon e Michael Cunningham. O primeiro eu sei que você curte. O segundo, não lembro. Escrevi sobre o último romance dele, o menos ambicioso, aqui. Os outros, a Bensimon já deve ter te falado, são obrigatórios.

http://rascunho.gazetadopovo.com.br/o-lado-negro-do-belo/

Tuca. disse...

Ah, antes do meu amigo falar do Baldwin, ele falou de Tony Kushner. Só vi a adaptação da peça Angels in America para a HBO. Curti bastante, mas também entendo as críticas feitas.

Samir Machado disse...

Oi Tuca,

Não vi o seriado, mas duvido que esteja à altura do livro. Da mesma forma, tem um telefilme do ano passado de 'Christopher and His Kind'estrelado pelo atual Dr. Who, e parece bom.

Genet: eu sugeriria, antes de tudo, que visse o filme (Querelle).
Burroughs: quem for ler Wild Boys tem que estar com muita disposição e boa vontade. Acho que foi o livro mais difícil que já li.

Mishima: é muito pesado, psicologicamente. Acho que eu gostei, mas fiquei meio sufocado com o livro.

Quanto às tuas sugestões:
Chabon: não sei como esqueci dele na lista! Talvez pq já tinha lido o Usina de Sonhos fazia um tempão (e o Kavalier e Clay também, talvez). Não consigo pensar em outro escritor hétero tão friendly quanto ele.

Cunnigham: sim, o Guilherme Smee e a Carol Bensimon já me falaram dele, mas não tinha ainda me preparado pra ler ele. Acho que agora, com três indicações, já posso pedir música no Fantástico.

Tony Kushner: não sabia que ele escrevia (literatura). Achei que fosse só dramaturgo. Vou procurar por algo dele, vale pela dica!

Samir Machado disse...

Aliás, sobre o Bom-Crioulo, acho qeu eu li um texto do Xerxenesky sobre o livro (ele teve que ler pra alguma cadeira da faculdade).

Tuca. disse...

(Se achar este texto, me passa?)

Nunca vi esse Matt Smith atuando, mas, só pelas fotos, acho ele um pouco assustador. Talvez porque lembre o "arrancador de mechas de cabelo" em "As panteras". O trailer é legal.

Você já deve ter lido "Garotos Incríveis". Leia, se ainda não o fez.

Única dica quanto ao Cunningham: não comece com "Dias exemplares". É o único que não li, mas todo mundo gosta de meter o pau nesse. O Rafael Bán Jacobsen foi o único que disse ter gostado. Eu ainda tô criando coragem: comprei há mais de um ano. Na resenha no Rascunho que linquei, apresentei uma brevissima sinopse de cada um dos livros. Veja lá qual é mais a tua cara.

Tony Kushner foi mancada minha. Mas se teatro tivesse valendo, era uma boa dica.

Genet: Já tô providenciando o filme pra ver. Tinha ouvido falar dele, mas algo no documentário "The Celluloid Closet" me fez desistir de ver Querelle.

Mishima e Burroughs: acho que vou demorar pra querer ler algo pesado ou difícil.

Uma dica de que me lembrei agora: "Ilusões pesadas", de Sacha Sperling. A capa é linda (se brincar, já apareceu no Sobrecapas) e o livro é bonzinho.

Tuca. disse...

Christopher and his kind é um bom filme, ainda que feito para a tv. Lembra Cabaret.

Samir Machado disse...

Oi Tuca,

Sim, a semelhança entre o Matt Smith e o Crispin Glover é meio assustadora. A relação com Cabaret no 'Christopher and His Kind', noque entendi, é que as histórias que compõem Cabaret são a versão ficional do que ele viveu em Berlin como retratado nessa biografia.

Do Chabon já li todos, exceto os de contos e os infanto-juvenis.

O Ilusões Pesadas, a capa acho que tinha ganho um prêmio, creio que do Getty Images, mas não tinha a menor idéia do que se tratava - valeu pela dica, vou procurar por esse.

Quanto ao Cunningham, acho que o Guilherme Smee tem quase todos, vou pedir pra ele uma indicaçãi de por qual começar.

Tuca. disse...

Ele dá a entender isso mesmo. Tem uma até uma hora em que ele reencontra anos depois uma personagem, que tinha pedido pra aparecer em um dos seus romances, e ela diz que sempre carrega consigo seu exemplar de "Sally Bowles".

Carmencita disse...

Lembrei-me desse, mas não o li:
http://en.wikipedia.org/wiki/Maurice_%28novel%29

Mateus Nagime disse...

Oi Samir, curti bastante esta lista. Comecei a ler o Kavalier e Clay, mas tive que dar um tempo. Vou ver se volto logo. E numa das minhas viagens na Escócia achei o Line of Beauty, tava baratinho (acho que 1 libra), mas fiquei com meio medo de comprar e não ser tão bom... me arrependi agora! Abraços!

Samir Machado disse...

Oi Mateus. Recomendo muito ambos. Essa lista acabou se expandindo e virando um novo blog, e falei do Line of Beauty lá: http://queerlist.blogspot.com.br/2014/02/a-linha-da-beleza.html

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