quinta-feira, 17 de junho de 2010

Cronologia cinéfila pessoal - 1

Lendo Não contem com o fim do livro, uma deliciosa conversa entre Umberto Eco e Jean-Claude Carriere que é menos sobre livros e mais sobre memórias afetivas e nossa relação com tecnologia e cultura, chego a um momento onde um deles (creio que Eco) comenta como lutamos pra armazenar o que a tecnologia luta por tornar obsoleto. Minha memória funciona por imagens, geralmente associadas ao universo pop ou de produtos de consumo (deve ser por isso que acabei cursando publicidade), e de certa forma, as limitações de uma época pré-internet (que só percebemos existir quando olhamos em retrospecto) fizeram com que meu gosto por cinema se desenvolvesse, antes mesmo do que por quadrinhos ou literatura, graças ao videocassete, claro, mas também à ausência de internet - e de informações em geral.
Isso por que antes da internet, a única fonte de informações sobre o que estava saindo de bom era a figura do cara da locadora, cuja opinião, na falta de outra, era lei. “Não tem Robocop ainda, mas tem esse aqui que é parecido, e achei bem bom”, e por aí vai. Um final de semana teria, em casa, uma pilha de pelo menos três ou quatro fitas. Por outro lado, cinemas de bairro ofereciam certa pompa que os multiplexes já não tem – só posso imaginar a diferrença entre um restaurante a la carte e um buffet, como comparação. O caminho até o banheiro, no extinto cine Baltimore, era ladeado pelos cartazes do que estava por vir. Eventualmente, uma capa de SET (ou de um exemplar importado de Fangoria) mostravam coisas que estavam por vir. O resto do mundo girava, como continua girando, indiferente a tudo isso, mas essas anotações que seguem abaixo, de certa forma, são o que me constrói enquanto personagem.


1986
Cinema | Cine Vitória, centro de Porto Alegre. Primeira incursão ao cinema, levado pela mãe. Orientação: “durante o filme, não pode falar”, orientação aparentemente ignorada pelos pais de hoje em dia. Filme em questão: He-Man e a Espada Mágica, onde He-Man e She-Ra finalmente descobrem que são irmãos, impedindo assim que a questão "incesto" seja levada adiante.
Videocassete | Pai compra videocassete e se associa nas videolocadoras do bairro - a Espaço Vídeo, antes localizada onde hoje é a Palavraria. Pilhas de filmes são alugados sem muito critério, e assistidos por mim sem grandes preocupações quanto à censura (agradeço imensamente aos meus pais por isso). Filmes de Spielberg, George Lucas e do Superman com Christopher Reeves.

Notas de rodapé da memória infantil:
- Após assistir E.T., minha mãe me faz prometer que, se um dia eu encontrasse um extraterrestre, mostraria pra ela também.
- Os heróis não tem idade, onde um menino e seu amigo imaginário estilo “comando-em-ação” são perseguidos por assassinos, que gravaram códigos ultra secretos num cartucho de Atari, é copiado num VHS e reassistido por mim mais vezes do que poderia contar. No mesmo ano, morá Estela do jardim de infância do colégio Israelita diz para minha mãe que não sei diferenciar realidade de ficção.

1987
Cinema | He-Man e os Mestres do Universo. Segunda incursão ao cinema, primeiro filme live-action. Dolph Lundgren fazendo He-Man de mullets, e Frank Langella maquiado como se fosse Jack Palance com lepra interpretando Esqueleto. Teclados eletrônicos abrem portais dimensionais, e um confronto final ocorre num cenário criado por Moebius que mais remete a um grande banheiro de motel de luxo. Courtney Cox é a mocinha. Talvez um dos filmes mais toscos de todos os tempos. Eu, com seis anos, achei o melhor filme do mundo. Sempre penso nisso toda vez que me pergunto como filmes como G.I.Joe ou Transformers podem fazer tanto sucesso.
Videocassete | Como Robocop não chegava na locadora, meu pai alugou um genérico semi-trash oportunamente chamado Roboman, cujo título original era The Vindicator. A coisa mais conhecida no elenco era Pam Grier, numa época em que ela andava bem esquecida. Momentos gore e efeitos do Stan Winston me supriram de pesadelos pelo resto do ano.

1988
Videocassete | Assisti Robocop com seis anos e, ao contrário da lógica geralmente aplicada por apocalípticos à violência no entretenimento de massa, não virei um psicopata. Mas aquele cara que toma um banho de ácido e depois é atropelado, virando literalmente um banho de mingau contra o pára-brisa de um carro, foi coisa de me deixar de olhos arregalados por um bom tempo.
Cinema | Única incursão ao cinema naquele ano foi para ver Super Xuxa contra Baixo-Astral. Duas vezes. Nada mais a declarar..


1989
Cinema | Meu pai abastece o carro nos postos Ipiranga e ganha um mini-pôster de Batman: o filme do Tim Burton (adoro o subtítulo "o filme" para adaptações). Primeira experiência em ser bombardeado de expectativa pela máquina midiática de Hollywood, ao qual se segue o álbum de figurinhas, o boneco articulado, uma máscara de plástico e os cadernos de colégio do segundo semestre. Cine Baltimore lotado, momento de catarse ao ver a batnave entrando em cena. Na semana seguinte, meu pai me compra quadrinhos do Batman: uma compilação de antigas histórias do Bob Kane, a “adaptação oficial do filme” em quadrinhos, e o número 4 de Cavaleiro das Trevas, primeiros quadrinhos de super-herói que leio.
• Os outros filmes que assisti naquele ano foram A Princesa Xuxa e os Trapalhões (o Star Wars brasileiro...) e De Volta para o Futuro II.
Videocassete | No mesmo ano, munido de uma lista publicada na revista Pateta é James Bond, vejo todos os filmes de James Bond lançados até então, e ganho de presente uma velha maleta com uma pistola de espoletas exatamente igual à uma arma normal (do tipo que hoje não se fabrica mais e provavelmente dá cadeia).

1990
Cinema | Segundo surto histérico-consumista: meu pai leva eu e outras tantas criaças ansiosas e hiperativas para assistir ao filme das Tartarugas Ninja (também com o subtítulo "o filme"), outra vez no cine Baltimore (os outros pais arregaram, creio). A programação é completada levando as mesmas crianças agitadas para o shopping, jogar o fliperama recém-lançado das mesmas (quase quarenta minutos de fila para jogar durante cinco minutos). O programa fliperama-depois-pizza precisou ser repetido por outros pais ao longo daquele ano. No ano seguinte, a continuação produzida a toque de caixa faz tudo se repetir de novo. Pense nisso antes de ter filhos.
Videocassete | Fantasia é lançado em VHS com muito alarde. Convenço meu pai a fazer uma cópia pra mim. Fico obcecado por animações da Disney. O pai de uma amiga, jornalista italiano, me consegue uma cópia em PAL-N de 101 Dálmatas e A Espada era a Lei, dublados em italiano, que eu curiosamente consigo compreender.

Notas de rodapé da memória infantil:
- Assisti Uma Cilada para Roger Rabbit e pedi para sair no meio do filme, primeiro de muitos acessos temperamentais (não lembro o que me motivou, na ocasião, mas creio qeu tenha sido uma briga com a minha irmã). Meu pai jurou que nunca mais me levaria no cinema de novo. Pouco depois, fomos assistir Dick Tracy e De Volta para o Futuro III.
- Ironias da vida, na mesma época em que meus pais começam um divórcio turbulento, uma amiga da minha mãe me leva pra assistir A Guerra dos Roses. Profético.

Isso da conta dos anos oitenta. Mais adiante continuo.

Cronologia Cinéfila Pessoal 2
Cronologia Cinéfila Pessoal 3

4 comentários:

Evandro de Souza Gomes disse...

Parabéns
Bela memória, chamaria de visual, e isso é um grande privilégio.
No tt estava brincando sobre o Kurosawa.
Vou acompanhar.
Um abraço

Evandro Gomes

Claudinei Vieira disse...

cara, isso é uma delícia. amei suas memórias, que já as torno minhas, mesmo que tenham sido (claro!) completamente diferentes daquelas porque passei, mas possuem o mesmo sabor nostálgico e formativo. muito bacana.
abraços

Gloria Pinto disse...

Samir, eu adoro o modo como voce escreve!!! Impressionante a sua memoria!!! Consegui me identificar com situações identicas que tb passei com a galera aqui!Nostalgia no ar...Saudades de voce! Beijos

Samir Machado disse...

É preciso esclarecer que é menos mérito da minha memória do que do hábito (muito nerd, por sinal) de anotar todos os filmes vistos na agenda do colégio (e depois, passar pra uma planilha de excel que mantenho até hoje).

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