terça-feira, 21 de abril de 2009

Trezentos anos de diferença...

Por acaso (tenho esse livro desde antes de nascer), por interesse (gosto de histórias "episódicas"), e por pesquisa (romance picaresco do século XVIII tem tudo a ver com o livro que tô escrevendo no momento), comecei a ler uma edição arqueológica de Gil Bráz de Santilhana, de Le Sage, edição da Livraria do Globo de 1953, herança paterna. Após ser assaltado, trapaceado, aprisionado e roubado, o protagonista acaba empregando-se como criado de sucessivos patrões de diversas profissões, evoluindo de rapaz ingênuo recém saído da casa dos pais para malandro escaldado de marca maior, numa sucessão de eventos, picaretagens e narrativas-dentro-de-narrativas tão rocambolescas que parece diretamente conectada com três leituras recentes minhas, o Mason & Dixon de Pynchon, o Livro das Mil e uma Noites na nova tradução de Mamede Mustafá Jarouche, e os livros de aventuras de Sharpe, de Bernard Cornwell.

Em uma ocasião, Gil Bráz emprega-se na casa de uma artista de teatro, Arsênica, que reune em seu círculo toda sorte de artistas de língua afiada, ocasião que serve pro jovem Gil Bráz tirar certas conclusões sobre o mundo:

"Para mim os artistas eram conhecedores das peças como os joalheiros das jóias, e o fato de verem triunfarem ou naufragarem as peças condenadas por eles, as que consideravam ótimas não abalavam minha confiança no seu julgamento, provaram-me até mais de uma vez que as críticas deles deveriam ser intepretadas as avessas.

Tive a oportunidade de ver o acerto dessa afirmação com a tragédia de Pedro de Moya, a qual teve um êxito ruidoso apesar das zombarias com que fora acolhida na leitura. O mesmo aconteceu com uma comédia que eles declaravam péssima e que, no entando, arrancou aplausos frenéticos do público. “Como diabos podem ter gostado dessa baboseira?”, comentavam ao terminar do espetáculo. Um comediante, muito ingenuamente, declarou que o êxito da comédia era devido ao fato, com certeza, da peça conter numerosos ditos de espírito que eles não tinham percebido.

Perdi a convicção na infalibilidade da crítica atribuída aos artistas e comecei a perceber-lhes todos os defeitos: eram levianos, superficiais e dissolutos. Porém, como eu era muito moço e inexperiente, aquela vida agradava-me e me seduzia por suas exterioridades brilhantes, embora minha consciência me ponderasse que tudo aquilo era pernicioso para mim."

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