Ler A Serviço Secreto de Sua Majestade entrou na minha lista após assistir o obscuro filme homônimo – aquele único estrelado pelo George Lazemby. Para minha surpresa (era o úitimo que me faltava assistir de todos), descobri um dos melhores da série, e até o Casino Royale de 2006, um dos poucos fiéis ao espírito do Bond literário.
Publicado em 1963, é o 11° da série, e o primeiro escrito por Fleming após o lançamento dos dois primeiros filmes, Dr. No (1961) e Moscou contra 007 (1962). Isso se reflete na inserção de uma descendência escocesa para Bond (em referência à Connery), e a inclusão de uma rápida participação metalingüística, quando Irma Bunt, apontando para Bond aos ricos e famosos no restaurante de Piz Gloria, comenta: “e aquela linda menina de cabelos longos na mesa grande, aquela é Ursula Andress, a estrela de cinema. Que lindo bronzeado ela tem!”.
O plot: continuação direta de Thunderball, Bond busca o paradeiro de Blofeld, o que (após um interlúdio de volta ao cassino de Royale) o leva à Suiça, no disfarce de um baronete especialista em heráldica, onde um conde – que pode ser Blofeld disfarçado – busca o reconhecimento de um título de nobreza, enquanto gerencia uma clinica de alergias isolada nos Alpes.
O livro: cada livro de Fleming, me parece, nasce sempre do casamento entre um tema pesquisado obsessivamente com um gosto particular seu, e aqui é o estudo de heráldica com o esqui, a fuga de Bond em meio à uma avalanche sendo o momento mais marcante do livro. Mas é também aquele em que mais se utiliza do chamado “efeito Fleming”. Abundam referências à marcas de bebidas, perfumes, produtos de beleza, companhias aéreas, carros, relógios de pulso, refeições suntuosas, desde as lembranças de infância de Bond que abrem com um chocolate Cadbury ao Maserati que encerra a história, já houve quem tenha se dado ao trabalho de contar 56 marcas citadas só nesse volume. Se na época, apenas uma década distante dos tempos de escassez da guerra, isso trazia uma boa dose de deslumbre consumista burguês com outro tanto de esnobismo, hoje em dia cada referência salta como versões em prosa equivalentes à anúncios retrôs colorindo a página com o zeitgeist de sua época.
Todas essas citações fazem ainda mais sentido quando levado em conta que OHMSS é, no seu âmago, uma história sobre vaidade e esnobismo: o desdém de Bond com sua ascendência e o deslumbre de Blofeld com a possibilidade de um título de nobreza, ressaltam algo já apontado por Kingsley Amis:
“se há um ponto nesses livros em que personagem e autor coincidem, é a falha em ser tentado pelo esnobismo entre pessoas. Nenhuma atenção especial é dada a pessoas com títulos de nobreza, ou vinculadas à corte, pessoas ricas (...) ou do tipo que aparecem em colunas de fofocas”, o que é uma quebra dramática com a tradição inglesa de romances de aventura, fortemente sustentada por nobres e damas, e se aproxima mais da “escola” americana de literatura de aventuras. Os vilões de Bond são milionários excêntricos, insuspeitos heróis de guerra ou aspirantes à títulos de nobreza (como o conde que revela ser mesmo Blofeld). Ele também desdenha das mulheres ricas e colunáveis, como atrizes de cinema, que sejam, nas suas palavras “propriedade pública”. – Kingsley Amis, The James Bond Dossier.
O vilão: ainda que Ernst Stavros Blofeld seja o vilão definitivo de Bond, tenho que dizer que ele nunca me empolga muito. Aqui não há grande avanço no seu desenvolvimento, já que seu background havia sido desenvolvido já em Thunderball, mas acrescenta-se sua capacidade camaleônica de mudar completamente de feições e modos (justificando que, nos filmes, seja interpretado cada vez por um ator diferente). Seu plano é completamente escalfobético, mas isso acrescenta certo charme ingênuo ao livro: as meninas hospedadas em sua clínica são, na verdade, submetidas à tratamentos hipnóticos e preparadas para contaminar toda a produção agrícola inglesa (a guerra biológica, uma novidade de então). Mais espaço ganha sua ajudante, fräulein Irma Bunt, a senhorinha alemã sinistra que comanda a clínica com mão de ferro.
A bondgirl: no primeiro momento em que Tracy surge na pagina, dirigindo um Lancia Flaminia Spyder e levando Bond outra vez rumo ao cassino de Royale (onde, revela-se, ele visita todo ano o túmulo de Vesper Lynd), ela já se torna uma das bondgirls mais marcantes. Como apontado por Anthony Burgess, diferente dos filmes, onde não passam de “garotas do mês”, as bondgirls literárias apresentam não apenas defeitos que as humanizam mas plausibilidade e consistêntica, geralmente vindas do dano psicológico ou da culpa pessoal. Tracy perdeu o marido e a filha, sua depressão à leva a ter tendências autodestrutivas, e Bond – que, diga-se de passagem, sempre apaixona-se à primeira vista e já pensa em casamento – sente-se responsável por ela. O impacto que ela causa em Bond é tal que compartilhamos do mesmo alívio que ele quando ela ressurge em cena na segunda metade do livro, pronta a, desta vez, ser ela a responsável por salvá-lo.
Momento Mad Men:
“Bond estava levemente desapontado. Ela soava um pouco grande demais para ele, e acontecia de não gostar de garotas, estrelas de cinema por exemplo, que fossem de alguma forma propriedade pública. Ele gostava das garotas privadas, garotas que ele podia descobrir sozinho e torná-las dele. Talvez, ele admitia, houvesse aí um esnobismo inverso. Talvez, mas menos provável, era que as mais famosas eram mais difíceis de se pegar.”
Fetiche:
Suas duas malas surradas chegaram e ele as desfez vagarosamente e então pediu ao Serviço de Quarto uma garrafa de Taittinger Blanc de Blanc que ele tornara seu drinque tradicional quando em Royale. Quando a garrafa, em seu balde prateado e gelado, chegou, bebeu um quarto dela um tanto rápido e entrou no banheiro e tomou um banho gelado e lavou os cabelos com Elixir Pinaud, aquele príncipe dentre os xampus, para tirar a poeira da estrada.
Aliás, o filme: é uma das adaptações mais fiéis ao livro em toda a série, e por mais que George Lazemby se esforce, tivesse Sean Connery estrelado esse Bond mais realista, teria sido o filme definitivo da série, já que, por uma conjunção de fatores, é a história que mais reúne situações tipicamente "bondianas". A trilha sonora instrumental é excelente, e teria sido ótimo ver Diana Rigg contracendo com Connery.
Bibliofilia: a última edição desse livro no Brasil data de 1965, pela Best-Seller. Essas traduções antigas são um pouco irritantes, sugiro ler no original.
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