terça-feira, 24 de julho de 2012

Bonds estranhos

O que une Só Se Vive Duas Vezes (que no Brasil nunca teve esse título, sendo editado como A Morte no Japão) e O Espião que me Amava é, talvez, a tentativa de Ian Fleming de experimentar com a formula criada por ele próprio, e em alguns momentos fugindo completamente dela, fazendo do primeiro mais um guia de viagens e costumes do que propriamente uma aventura, e do segundo uma trama policial noir com uma participação mínima de Bond. Em ambos os livros, o resultado é um pouco confuso e não de todo satisfatório (em especial no primeiro), do tipo que eu não recomendaria para um leitor iniciante dos livros de Bond, mas acréscimos bacanas para os já iniciados.



You Only Live Twice
O plot: continuando diretamente de onde A Serviço Secreto de Sua Majestade parou, somos apresentados à um Bond destruído pelo remorso após ver Tracy ser morta por Blofeld apenas algumas horas após seu casamento, no livro anterior. Bebendo e cometendo erros demais, é por sugestão do psicólogo do MI5 que M decide enviá-lo numa missão que será sua última chance antes de uma aposentadoria compulsória (Bond, veja só, sonha em criar galinhas num sítio). A missão trata de viajar até o Japão e entrar em contato com Tiger Tanaka, o chefe do serviço secreto japonês, e oferecer-lhe acesso à uma máquina decodificadora inglesa em troca de acesso aos canais de espionagem dos japoneses sobre os russos. Mas chegando ao Japão, Bond descobre que sua mercadoria de troca possui pouco valor, e Tiger faz-lhe outra proposta: matar o cientista gaijin que, instalado num antigo castelo, criou em sua propriedade um “jardim da morte” que vêm atraindo todos os suicidas da região.



 
O livro: é um dos livros mais esquisitos de toda a série. Dois terços dele são puramente turismo, o travelog de Bond em sua estadia no Japão. Mesmo quando o tema do “jardim da morte” é introduzido – um jardim botânico particular reunindo todas as espécies de arvores e plantas venenosas possíveis, plus lago com piranhas – a trama custa a engrenar e ação mesmo só se vai ter no quarto final do livro. A visão de Fleming sobre o Japão dos anos cinquenta é interessada e dotada de sensibilidade cultural, e sob vários aspectos, faz sentido que o tema central do livro seja o suicídio (o comportamento autodestrutivo de Bond em paralelo aos ímpetos suicidas dos japoneses, o próprio Tiger Tanaka sendo um aspirante à camicaze).
Na segunda parte do livro, para infiltrar-se no castelo do gaijin misterioso (que, como se desconfia o tempo todo, é o próprio Blofeld) Bond precisa passar algum tempo vivendo como um japonês numa ilha de pescadores (e receber treinamento ninja!). Apesar de culturalmente interessante, não há nenhuma necessidade disso por parte da trama, exceto para justificar o final em aberto. A ação, quando surge, é intensa e meio louca – Blofeld anda por seu jardim usando uma armadura samurai, Bond precisa enfrentá-lo seminu -, mas loucura é um fator que permeia o livro.
 
Momento Mad Men:
“O sistema oriental de vida exerce uma atração especial sobre o americano que deseja fugir à sua cultura – pois há de reconhecer que sou muito comedido quando afirmo que essa cultura perde cada vez mais os seus encantos, salvo para os tipos inferiores da espécie humana, aos olhos de quem a comida má porém farta, os brinquedos bonitos como o automóvel e a televisão, e o quick Buck,  dólar ganho com facilidade e muitas vezes por meios desonestos ou em troca de um mínimo de trabalho ou aptidão, constituem o sumum bonum, se me permite este eco sentimental dos meus tempos de Cambridge” – Tiger Tanaka.
 
Aliás, o filme: adaptado ao cinema num roteiro escrito por Roald Dahl, que considerava este o pior dos livros de Fleming (longe disso, mas talvez o menos coeso e com menos trama aproveitável), o filme tem muito pouco do livro além da ambientação e seus personagens, fazendo uma leve fusão com elementos de Moonraker (a gigantesca base de lançamento do foguete, por exemplo) e dividindo a bond-girl Kissy Suzuki, uma ex-atriz que vive como pescadora de pérolas, em duas: a atriz japonesa Aki e a pescadora homônima.
 
Bibliofilia: a única vez que esse livro foi publicado no Brasil foi em 1965 pela Editora Globo de Porto Alegre, com o título A Morte no Japão. A tradução da época, com todas suas gírias, traz frases quase incompreensíveis como “...fomos micrados, seu godeme burro! Foi aquele engrazulador!” que as vezes complicam um pouco a vida, mas é uma boa tradução, no geral.
 

The Spy Who Loved Me
O plot: o livro é dividido em três partes. Na primeira, Eu, Vivienne Michel, uma franco-canadense criada na Inglaterra, recorda sua trajetória da juventude no colégio interno até o momento presente, isolada num motel de beira de estrada nas montanhas Adirondacks, durante uma tempestade – uma trajetória marcada pelos dois homens que se aproveitaram dela e a enganaram. O primeiro, Derek, que a seduz e desvirgina num cinema, e o segundo, o frio e distante Kurt, que a usa como objeto.
A segunda parte, Eles, mostra a chegada ao motel de uma dupla de gangsters, Sluggsy e Horror, que a mando do proprietário vieram tacar fogo ao local para ganhar o dinheiro do seguro, e que atormentam a vida de Vivienne ao estilo Horas de Desespero.
A terceira parte, Ele, começa quando um terceiro desconhecido, por acidente, chega ao hotel na mesma noite, o que oferece à desesperada Vivienne uma chance de escapar dos dois gangsters, já que o homem em questão é um certo agente secreto inglês.
 
O livro: Esse é talvez o livro mais atípico de toda a série, e provavelmente o mais injustiçado. Já tendo experimentado em Quantum of Solace uma história de Bond sem James Bond, aqui Fleming radicalizou em resposta aos que o acusavam de misógino: uma história narrada do ponto de vista da bond-girl. É notório que Ian Fleming, dada a repercussão negativa do seu público à época, chamou o livro de um “experimento mal-sucedido”. O retrato dos homens no livro não é nada lisonjeiro, e não há um que se salve (exceto Bond, claro). Todos tratam Vivienne como objeto, são aproveitadores e oportunistas, ou frios por natureza, cujo único interesse é seduzi-la, o que faz com que a primeira parte transcorra num tom de filme erótico soft, onde tudo é desculpa para que os personagens cheguem ao sexo, enquanto a segunda parte corra como um drama policial noir de tons hitchcockianos ao estilo Raymond Chandler (que, por sinal, era amigo pessoal de Fleming). É somente na terceira parte que temos James Bond em cena (sua participação na história é mero acaso - o pneu furado próximo ao motel), e o livro parece decidir-se a que veio, e pode-se dizer que a ação é satisfatória (há um flashback de Bond, em missão contra a SPECTRE), assim como o confronto de 007 com os dois vilões. Se o livro não é excepcional na execução, está longe de ser o “experimento fracassado” proclamado por seu próprio autor.
 
Momento Mad Men:
“Todas as mulheres gostam de ser meio violentadas. Gostam de ser possuídas. Foi sua suave brutalidade contra meu corpo escoriado que tornou seu ato de amor tão penetrantemente maravilhoso. Isso e a coincidência dos nervos completamente relaxados depois de eliminada a tensão e o perigo, o calor de gratidão e o sentimento natural da mulher por seu herói”.
Sobre essa famosa “frase do estupro” de Fleming (no original, ele usa a palavra rape mesmo), deve se colocar a citação dentro de dois contextos: a) o subtexto de insinuação sexual de fetiche sadomasoquista que permeia toda a obra de Fleming, em que não há dor que não seja direta ou indiretamente associada à idéia de prazer em todos os livros, b) se a prosa de Fleming tem a vantagem de ser limpa e fluída, com certo apreço por descrições sensoriais, ela também se torna desastrada ao expor idéias que o prendem à sua época. Ou seja: Fleming não está, obviamente, fazendo uma apologia ao estupro ou à idéia de que mulheres gostam de ser violentadas, mas sim à idéia de que o prazer sexual venha da entrega e submissão (do corpo, não da vontade) ao parceiro - ao "homem com pegada", num contexto mais atual, o que combina com o personagem criado por ele. O problema é que Fleming tem um histórico literário marcado pelo chauvinismo (e não por misoginia, ao contrário da leitura superficial que Alan Moore faz do personagem no Black Dossier da Liga Extraordinária). E suas limitações como escritor se fazem mais salientes nesses momentos desastrados em que tenta expor uma idéia mas e acaba parecendo expressar o oposto.
 
Aliás, o filme: Ian Fleming proibiu especificamente que qualquer aspecto de O Espião que me Amava fosse adaptado ao cinema, exceto no título. Ainda assim, há pelo menos alguma coisa em comum entre o filme e o livro: o gangster Horror, assim como o Jaws do filme, possui os dentes recapados com aço.
 
Bibliofilia: o livro foi lançado no Brasil em 1965 pela editora Best Seller sob o título Espião e Amante, e nunca mais teve outra edição em português. Como o filme não tinha nada em comum com o livro, os herdeiros de Fleming autorizaram o roteirista Christopher Wood a escrever a adaptação 007 O Espião que me Amava (no original,- “James Bond, The Spy Who Loved Me”), editada no Brasil em 1977 pela Record.

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