quinta-feira, 18 de julho de 2013

Lendo Hamlet em 1754

Em algum momento, defini que um personagem no meu livro leria Hamlet, e de certa forma isso serviria para conectar as quatro partes do livro. Não foi uma escolha aleatória, a primeira cena do terceiro ato tem uma relação direta com o conflito do personagem (e cuja chave de interpretação, tenho que confessar, só me chegou depois de muitos anos, lendo uma adaptação do Will Eisner).

Contudo, aí vieram problemas: meus personagens vivem no Brasil em 1754. e a primeira tradução de Hamlet para o português só veio mais de cem anos depois, em 1877, feita pelo rei Luis I de Portugal. Então, se eu disser que, muito provavelmente, não havia ninguém lendo Shakespeare no Brasil durante o século XVIII, embora uma afirmação arriscada, corre-se o risco de estar correto. A não ser que a pessoa fosse fluente em inglês, alemão, francês ou russo. O que é sempre possível, mas não para o meu personagem que, fica logo estabelecido, sabia somente português e espanhol (e a primeira tradução espanhola data de 1772, vinte anos após a época em que se passa minha história).

Que fazer? Inventar. Mas não de todo.

Pois para minha sorte, descobri que, em 1607 (Shakespeare ainda vivo, portanto), o navio inglês Red Dragon, com sua tripulação de 150 homens e comandado pelo capitão John Keeling, estava ancorado à costa de Serra Leoa. Enviou uma comitiva para saudar o rei africano local, um tal Boreas e, em troca, recebeu à bordo também a comitiva do rei. Para a surpresa dos ingleses em seus preconceitos raciais, Lucas Fernandes, emissário e cunhado do rei Borea, não só era fluente em português como extremamente eloquente e inteligente. Para entreter a comitiva africana, encenou-se à bordo do Red Dragon a tragédia de Hamlet, que o próprio Lucas Fernandes traduziu para o português, e que foi encenada pelos marinheiros ingleses. Da qualidade da encenação, não se tem registro. Do texto traduzido tampouco. O que se tem registro é que esta foi recém a segunda tradução de Shakespeare para outra lingua (a primeira foi em alemão), e a primeira em lingua portuguesa.

Inusitado. Contudo, já me bastou: meu personagem encontra, então, numa biblioteca perdida, um exemplar raro de um texto que, muito provavelmente, nunca foi publicada em livro. Mas ficção é invenção. Já para o trecho usado, que acaba por provocar uma revelação pessoal no personagem, acabei usando a versão de Luis I, de 1877, trocando algumas palavras por sinônimos mais próximos ao português do século XVIII e acrescentando todas as esquisitices típicas do português setecentista, incluindo-se nisso, o S longo (do qual falo noutra ocasião).

Sobre o Hamlet de Lucas Fernandez, o texto original que me serviu de base, descrevendo as condições e o contexto em que a peça foi encenada no Red Dragon, pode ser lido aqui e outro texto aqui.

Ainda no mesmo assunto, Jorge Furtado escreveu um texto sobre o Hamlet africano, no blog da Casa de Cinema de Porto Alegre - que pode ser lido aqui.

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