sexta-feira, 29 de junho de 2012

Bond #07

Levei nove livros para chegar naquele que, tranquilamente, é o melhor da série – logo o terceiro, que eu havia pulado por não gostar do filme (na ordem de preferência, fui escolhendo pelos filmes que gostava mais, e convenhamos que 007 contra o Foguete da Morte, aquele em que Roger Moore vai pro espaço, é constrangedor). Mas - nenhuma surpresa - o livro não tem praticamente relação com o filme, exceto por compartilhar o nome do protagonista e do vilão.

Moonraker
Há três particularidades em Moonraker que cortam a fórmula fleminguiana: é aquele em que Bond não sai da Inglaterra (toda a ação se passa em Londres, Kent e nos rochedos de Dover), é aquele em que Bond não seduz a bondgirl (ela está noiva) e é um dos poucos que revelam o que Bond faz quando não está correndo o mundo atrás de terroristas: lê relatórios chatos, despacha a papelada no escritório, almoça na cantina do prédio com o Chefe de Pessoal, disputa com os outros agentes 00 (revela-se que são somente três ao todo, 008 e 011, sendo que Bond é o agente sênior) a atenção das secretarias, restaura seu Bentley e pensa nos casos que mantém com três diferentes mulheres casadas.
Já Hugo Drax, o vilão da trama, é também o primeiro antagonista genuinamente megalômano – Fleming teve o cuidado de consultar psiquiatras para familiarizar-se com as características do comportamento de um megalomaníaco. Em Drax, já estão plantadas as sementes que derivariam em Dr. No, Goldfinger e Blofeld, e de todos os vilões até agora, é de longe o mais consistente, tanto no plano quanto no perfil psicológico.
 
O plot: entediado com a rotina de escritório, Bond é chamado por M para prestar-lhe um favor pessoal: no seu clube de cavalheiros, o Blades, suspeita-se que o milionário Hugo Drax trapaceia nas cartas. O problema é que, além de ser herói nacional, Drax é o responsável pelo Projeto Moonraker, do qual depende a defesa da Inglaterra contra a ameaça comunista. M leva Bond como seu convidado para uma noite no clube, entre jantares e carteado, para aplicar uma lição à Drax. Na segunda parte do livro, a morte do chefe da segurança do projeto Moonraker por um dos cientistas alemães faz com que Bond seja enviado às pressas para a gigantesca base do foguete e investigar o ocorrido, junto com uma agente policial, Gala Brand, disfarçada de secretária de Drax, a poucos dias de seu primeiro lançamento-teste, um evento que será televisionado para todo o país.
 
O livro: Fleming era um bom jornalista antes de se tornar escritor, e seu estilo de escrita essencialmente jornalístico – como apontou Anthony Burgess, “a imagem adequada, o olho para o detalhe, o interesse pelas questões mundiais por um lado e, pelo outro, a fascinação pelas minúcias do cotidiano” - casa á perfeição com a estrutura concisa da história. Essa concisão se dá no espaço de tempo, já que toda a história corre durante uma semana; no espaço geográfico (não vai além de três cenários: as salas do MI5, o Blades, e a base do Moonraker), e no ritmo, que cresce vertiginosamente no terço final, conforme aproxima-se o momento do lançamento do foguete.
A primeira metade do livro, focada no clube Blades, é um deleite descritivo. É nítida a empolgação de Fleming em detalhar os ambientes de luxo extremo pela ótica classe-média ao mesmo tempo deslumbrada e cínica de Bond. Um capítulo inteiro é dedicado ao jantar e seus pormenores – a vodka russa com pimenta, o prato de ossobuco, uma safra exclusiva de Dom Perignon. Da mesma forma, alguns capítulos antes, a rotina da Universal Exports – o nome de fachada do MI6 - é descrita sob a ótica de Loelia Ponsonby, a secretária de Bond (que, nos cinemas, fundiu-se com a figura de Moneypenny, secretária de M) em observações dignas de um episódio de Mad Men, que nos lembram que, se já não são mais dignos do pouco lisonjeiro rótulo de “best-sellers” que ostentavam nos anos cinquenta e sessenta, os livros de Fleming são excelentes livros de época.
 
O vilão: o milionário Hugo Drax, herói da Segunda Guerra, com metade do rosto marcado por cicatrizes de queimaduras, milionário, está à frente do projeto Moonraker, um novo foguete que será capaz de chegar à qualquer cidade da Europa e recolocar a Inglaterra no cenário da poítica mundial. Qualquer leitor escolado no gênero sabe que deve desconfiar de alguém que, nos anos cinqüenta, empregasse unicamente cientistas alemães: Drax é, na verdade, um ex-nazista paradoxalmente à soldo dos russos, e seu plano é alterar o curso do Moonraker e destruir Londres com uma ogiva nuclear. É um dos melhores vilões literários de Bond, ao menos um dos possuidores da personalidade mais vigorosa. Vulgar e bom-vivant, Drax é um ogro da era do jato, e através dele Fleming brinca com maestria com três medos ciquentistas: os foguetes V-2, o ressurgimento do nazismo e a ameaça nuclear.
 
A bondgirl: a agente especial Gala Brand destaca-se no harém literário de Bond por uma peculiaridade: é a única que não é seduzida pelos charmes do agente inglês (embora Bond prefira ignorar a existência de um anel de noivado na mão da moça durante o todo o livro, no final ela revela estar noiva). E, ao contrário do pouco caso que geralmente faz ao conhecer outras agentes mulheres, como Vesper, ele desde o início admira o profissionalismo de Gala em campo. Ela também permanece uma das únicas duas bondgirls a não terem aparecido nos cinemas (outra bondgirl foi inventada para o filme, que quase não guarda relações com o livro).

Momento Mad Men:
Era alta e morena com uma beleza discreta e uniforme, para o qual a guerra e cinco anos no Serviço doaram um toque de austeridade. A não ser que casasse logo, pensou Bond pela centésima vez, ou arranjasse um amante, seu ar frio de autoridade poderia facilmente torná-la uma solteirona e ela ingressaria no exército de mulheres que casaram com a carreira.
Bond dizia-lhe isso freqüentemente, e ele e os outros dois membros da Seção 00 haviam por várias vezes feito assaltos determinados à sua virtude. Ela lidara com eles todos com a mesma frieza maternal (que eles, para resguardar-lhes os egos, consideraram em privado como frigidez) e, no dia seguinte, ela tratou-os com pequena atenção e gentileza para mostrar que era realmente culpa dela e que ela os perdoava.
(Alguns livros adiante, após muito suportar o assédio dos agentes 00, é revelado em On Her Majesty Secret Service que Loelia abandonara o Serviço Secreto para casar-se, sendo substituída por Mary Goodnight.)
Em A Serviço Secreto de Sua Majestade, é revelado que Loelia, a secretária de Bond, saiu do Serviço para casar-se, sendo substituídapor Mary Goodnight.

Fetiche:
“Sobrou algo daquele caviar Beluga, Porterfield?”
“Sim, senhor. Houve uma nova entrega semana passada”.
“Bem”, disse M, “Caviar para mim. Rins Endiabrados* e uma fatia do seu excelente bacon. Ervilhas e batatas novas. Morangos ao kirsch. E para você, James?”
“Peguei uma obsessão por um bom salmão defumado”, disse Bond. Então apontou para o cardápio. “Costeletas de carneiro. Os mesmos vegetais que você, já que é maio. Aspargos ao molho bearnês me parece maravilhoso. E talvez uma fatia de abacaxi”. Recostou-se e afastou o cardápio.
“Graças a Deus por um homem que sabe se decidir”, disse M. Olhou acima para o gerente. “Pegou tudo, Porterfield?”
“Sim, senhor”. O gerente sorriu. “O senhor gostaria de um ossobuco após os morangos, senhor? Recebemos uma meia-dúzia hoje do interior, e guardei uma especialmente para o senhor, caso viesse”
“É claro. Você sabe que não resisto à eles. Ruim para mim mas não há o que fazer. Deus sabe o que eu estou celebrando esta noite. Mas não acontece com freqüência. Poderia pedir à Grimley para vir aqui?”
“Ele está aqui agora, senhor”, disse o gerente, abrindo espaço para o sommelier.
“Ah, Grimley, um pouco de vodka, por favor”. Virou-se para Bond. “Não a coisa que você põe no seu coquetel. Esta é uma Wolfschmidt de Riga, legítima, de antes da guerra. Gostaria de um pouco com o seu salmão defumado?”
“Muito”, disse Bond.
(*Não faço a menor idéia de como se poderia traduzir Devilled Kidney, um prato típico vitoriano feito de rins de carneiro em molho inglês com cogumelos).

Aliás, o filme: (suspiro). De Moonraker só tem o nome. À época, os produtores acharam que seria interessante levar 007 ao espaço para pegar a onda de Star Wars, fazendo com que o melhor livro da série resultasse num dos piores filmes da série, ou pelo menos, dos mais cafonas (...e nos livros, Bond não chegou nem perto do Rio de Janeiro). Curiosamente, partes do plot do Moonraker literário foi reaproveitado décadas depois em Um Novo Dia para Morrer, e o climax do livro está presente, por incrível que pareça, referenciado em parte do climax de Os Incríveis.

Bibliofilia: ao leitor interessado é preciso cuidado. Existem dois Moonrakers. O primeiro é o livro original de Fleming, publicado pela última vez no Brasil em 1965 pela Civilização Brasileira sob o título O Foguete da Morte. O segundo é uma adaptação do roteiro do filme de 1979, que em nada guarda relação com o livro, escrita pelo próprio roteirista, um tal Christopher Wood  - e insistentemente republicado no Brasil pelo extinto Círculo do Livro.

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