terça-feira, 20 de agosto de 2013

Para o caril, os adubos de praxe


Se tem uma coisa que aprendi lendo Ian Fleming, foi o quanto uma cena banal de conversa entre dois personagens pode ganhar vida se colocar comida entre eles, de preferência, com descrições detalhadas. Pode não servir para nada na história, e talvez justamente por isto, pelo caráter decorativo no meio da narrativa, falar de comida me pareceu uma forma sensorial muito pertinente de decoração literária.

Entradas
Em Quatro Soldados, há um capítulo onde dois de meus personagens tem uma discussão à mesa do almoço. Como a conversa se dá em Laguna, e não imagino que outra coisa se coma no litoral de Santa Catarina que não seja frutos do mar, determinei que comeriam camarões. Para minha sorte, em meio à pesquisa, descobri o livro Arte de Cozinha, editado em Portugal por Domingos Rodrigues em 1680, com sucessivas reedições ao longo do século XVIII entre 1732 e 1794. Rodrigues era o cozinheiro real de D. João IV e escreveu, oficialmente, o primeiro livro de receitas editado em português de que se tem ciência. “Todas as coisas que ensino experimentei por minha própria mão e as mais delas inventei por minha habilidade”, garante no prólogo.

Prato principal
Com isso, consegui definir um cardápio - peixe mourisco, acompanhado por um caril (curry) de camarões e arroz. Superada a barreira linguistica - "adubos pretos", descobri, refere-se à pimenta, noz moscada e cravo-da-índia - e métrica (um arrátel equivale, mais ou menos, a 459 gamas), meus personagens já podiam almoçar.
O efeito colateral disso: ao longo dos três meses em que trabalhei nessa parte - não por pesquisa, mas por efeito puramente somático, eu comi: camarão à milanesa, camarão à romana, camarão a alho e óleo, camarão no bafo, pizza de camarão, risoto de camarão, espaguete com camarão e, climax, uma sequência de camarões num restaurante no litoral de Santa Catarina. Concluo que escrever sobre comida dá fome.

Sobremesa
E então veio a sobremesa: o que se poderia comer de doces numa época anterior à refrigeração? Segundo o artigo Doces de ovos, doces de freiras, de Leila Mezan Algranti, a doçaria portuguesa do século XVIII desenvolvia-se principalmente nos conventos, onde se tinha acesso à ovos, leite, açúcar e amêndoas, principais ingredientes da época. Cruzando-se esses dados com o livro de Domingos Rodrigues, foi possível determinar alguns doces que poderiam ser oferecidos ao final da refeição entre Licurgo e o Andaluz, além de dar ao personagem um gosto particular por amêndoas confeitadas - gosto esse que acabou passando para mim.

Cafezinho?
Não há cafezinho, mas há, a certa altura, chocolate - seguindo a receita de Hans Sloane, vendida por boticários ingleses. Sloane, além de fundar o Museu Britânico, também contribuiu para a Humanidade com a idéia revolucionária, ao voltar de viagem da Jamaica, de colocar leite no chocolate (como sempre fizeram com o chá). Note-se que, até então, o chocolate era uma bebida preparada com água tal qual o café, e em barra, só cem anos depois. Para se ter uma idéia, deixo abaixo uma receita de , conforme consta do Artes de Cozinha de Domingos Rodrigues.
Chicolate
Ponhaõ-se a torrar cinco arrateis de cacáo, depois de torrado alimpem-no, e tirem lhe a casca ; pize-se muito bem, misture-se com trez arrateis de açúcar de pedra, e trez onças de canella fina peneirada, logo que eftiver tudo isto muito bem misturado, vá-fe moendo em numa pedra; como quem móe tintas, moasse segunda, e terceira vez, e corro estiver em massa, deitem-lhe oito bainilhas pizadas, e peneiradas, façaõ-le os bolos na fórma que quizerem.

Bibliografia:
Artes de Cozinha, de Domingos Rodrigues, disponível para download no site da Biblioteca Nacional de Portugal. O livro foi reeditado em 2008 pelo Senac-Rio, atualizado e adaptado por Flávia Quaresma.
Doces de ovos, doces de freiras, de Leila Mezan Algranti.

2 comentários:

Clovis Bulcão disse...

LIVRO MARAVILHOSO!!!

Clovis Bulcão - Real Quinta da Boa Vista

Sara disse...

Eu acho que nós sempre temos que ter em mente que cozinhar é uma arte e devemos ter isso em conta e aprender com ele, espero que este ano eu possa aprender um monte de cozinha para trabalhar em um restaurante que está no site do restorando

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